Em 1953, a escritora brasileira Cecília Meireles viajou para a Índia e recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Delhi.
Pioneira na divulgação da literatura indiana no Brasil, ela esteve apenas uma vez na Índia, aos 52 anos de idade. Cecília escreveu diversas crônicas e poemas, retratando suas impressões sobre a viagem durante os dois meses de sua estada. Ela considerava estes como os seus mais valiosos registros. Em 1961, 59 poemas foram publicados com o título de "Poemas escritos na Índia".
Crônicas de Viagem: A Índia – Cecília Meireles
Estes dias de canícula trazem-me à lembrança os meses passados na Índia, com o termômetro ainda mais alto que o nosso e nenhuma promessa de chuva antes da estação própria. Em alguns lugares, a paisagem tornara-se de um cinzento esbranquiçado - ossos, cal, cinza. O peso do sol era o peso do céu. Diziam-me: "Quando chover, fica tudo verde."
Mas o indiano tem o prazer do ar livre. Os belos jardins públicos estão sempre povoados de famílias que espairecem , passeiam, contemplam as árvores, admiram as flores, maravilham-se com os jorros d’água, os lagos, a sombra, as cores... Ao ar livre trabalha muita gente: barbeiros, costureiros, latoeiros... Ao ar livre fabrica-se e vende-se, brinca-se, estuda-se, medita-se.
As casas foram pensadas para um clima assim. Os aposentos muito altos são rasgados por amplas janelas, grandes portas, e por cima delas quase junto ao teto, ainda se vêem aberturas que facilitam a ventilação. Portas e janelas são para estarem abertas, no verão, protegidas às vezes por leves cortinas, ou por esteiras, que é costume molhar, para favorecer a frescura do ambiente. Há palhas perfumosas, que, molhadas, recedem. Fazem-se também quiosques de palha trançada, em alguns lugares nas casas modernas existem, naturalmente, grandes ventiladores suspensos no teto. O resto são varandas, cortinas que se levantam à menor brisa, e repuxos: o ar e água, que com o rumor de seus jogos consolam e refrescam.
Por outro lado, a vida indiana é simples e plácida. A comida, leve, quase sempre reduzida a legumes e arroz, um pouco de peixe ou ave. Muitas frutas: as mesmas frutas brasileiras que nos dão a impressão de não termos saído da terra: caju, manga, cocos, tamarindo, goiaba... E finalmente, leite, coalhadas, queijinhos moles, creme.
Como o sol, a certas horas, é insuportável, há trabalhos que começam muito cedo, no campo; e nas horas mais quentes do dia um grande sossego de sesta envolve a natureza e as criaturas , principalmente nos lugares pequenos, onde a vida é menos intensa.
A vestimenta típica dos indianos, homens e mulheres, além de sua grande beleza, é a mais inteligente que se possa usar também no verão. O sári é um longo pano (que pode ir do simples tecido de algodão à seda, e à gaze mais primorosamente ornamentada) com que a mulher indiana faz, rapidamente, uma elegante saia, sem costura nem qualquer espécie de prendedores, ajustando-o ao corpo, pregueando-o, fixando-o a cós da anágua, deixando uma ponta solta, como echarpe, que pode cobrir a cabeça ou envolver os ombros e busto, por cima da blusa.
O vestuário tradicional dos homens é aquele que Gandhi tornou conhecido no Ocidente: um sistema de panos brancos e flutuantes, formando calções amplos e o manto para as costas. Nem todos os homens se vestem assim, nem em todas as circunstâncias, mas os que sabem trazer esse tipo de indumentária imprimem à paisagem indiana uma nota inesquecível de autenticidade. Sandálias recortadas de variados modos completam esse guarda roupa. E só de olhar para as roupas de qualquer pessoa, para esses tecidos tão sensíveis que se franzem à menor brisa, pode-se ver se há calmaria ou se algum vento se esboça.
Como os indianos são normalmente abstêmios, mesmo em ocasiões de festa, as bebidas de suco de frutas, são verdadeiramente refrescantes. E as mais belas recepções são, sem dúvida, ao ar livre, nos jardins, entre as árvores, às vezes com tendas graciosas armadas, para facilitarem o serviço. Quando o jardim é o do palácio presidencial, todo recortado de canteiros entremeados d’água, com repuxos inúmeros, e todo bordado de flores como um tapete, e quando a festa é uma data nacional, não há salão que se possa igualar a esse ambiente de flores, águas irisadas, bebidas perfumosas e coloridas, e o fulgor das roupas orientais, de tons intensos e límpidos.
À noite, dorme-se nos terraços, nos jardins, nas varandas, na rua. Uns dormem pelo chão, em esteiras, outros nessas camas de vento (na verdade, de vento...) sem colchão, apenas com um trançado de cadarços em lugar do estrado. Os estrangeiros pensam que se dorme na rua só por pobreza, mas não é bem verdade. Há quem transporte sua cama para o lado de fora da casa a fim de aproveitar a fresca da noite para o repouso. E pergunto-me se haverá muitos lugares, hoje, no mundo, em que um mortal possa dormir tranqüilo ao ar livre, sem que outro mortal lhe venha tirar pelo menos o lençol e o travesseiro.
(Cecília Meireles. In: Obra em prosa - Crônicas de Viagem 2)
13 comentários:
Olá!
Excelente crónica...
Gostei muito do texto e do blog também...
Um beijo e bom fim de semana.
Paso por tu blog y te dejo saludos y agradecimientos por visitar el mío....volveré para leer no solo esta sino muchos de tus escritos.
Saludos
Sergio
Alma, muito obrigada pelo comentário! Fico feliz que você gostou da crônica da Cecília... O trabalho dela é mesmo fabuloso!!!
Sergio,
Gracias pelo comentário!!! Saludos!!!
=)
que bonito post! não sou expert em Cecília e essa relação dela com a Índia me encantou e interessou. adoro suas indicações de livros Potira, grande abraço! patricia
um sub-continente mágico.
Belíssimo seu post
Sempre muito energizante e reflectivo
Um tesouro para nós absorvermos
Com todo carinho e agradecimento pela partilha
Abraço Apertado
Namastê !!
A Cecília é muito linda, e ela falando da Índia é muito bacana.
Beijos,
Oi Potira!
Não consigo lembrar onde você escreveu no meu blog...
Queria saber se você me indicaria um livro que fale sobre marketing espiritual na Índia que não seja o da Gita...
Obrigada!
Bjs
Grande abraço Patrícia!!!
=)
Magia da Noite, amei seu comentário!!!
=D
Namaste Deusa!!!
Eu que agradeço o carinho de vocês!!!
=)
Alexandra, nem me fale, eu sou suspeitíssima para falar...
=D
Flor...
Já respondi no teu blog.
=)
Em minha exposição "Passagem por Goa", utilizei vários trechos dos poemas da Cecília.
Aliás, um de meus projetos é, em 2013, quando seu livro completa 60 anos, fazer outra exposição, desta feita só com poemas dela e com fotos tiradas nos lugares que ela "descreve"...
Bem, é um projeto...
Bacci
Que bonito esse relato da Cecília Meireles, adorei.
Adorei!
Adorei o texto!! Nao sabia que a Cecilia havia estado na India, e gostei muito da descricao dela.
Ah, e tambem estou gostando muito do site!!
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