Passagem por Goa
Evandro Domingues em 17 de setembro de 2008
Vivo com Goa – e Goa comigo – há já cinco anos, desde que me interessei pela literatura desta antiga colônia portuguesa. A paixão tornou-se séria quando fui aceito no programa de Doutorado da UFF para estudar literatura goesa contemporânea em língua portuguesa. Deram asas à cobra. Viajante incansável, achei que não ficava bonito escrever e ler tanto sobre Goa sem lá ir conhecer aquela realidade. Tinha, então, desculpa para, enfim, conhecer a Índia, paixão antiga, adolescente, mas que andava meio adormecida.
Fui duas vezes: em janeiro de 2007 e em janeiro deste ano, mas este pequeno texto trata mais da viagem primeira. Já no caminho para o hotel, o inesquecível: são tantas as crianças, tantos os sáris esvoaçantes, tantas as mangueiras ancestrais. Os pontos de ônibus, lotados, nas entradas das aldeias. À tarde vou andar, meto-me por Caranzalem: as corumbinas peixeiras, as casas cristãs, os tulsis das casas hindus. O quarto do hotel tem TV de plasma e uma vela com caixa de fósforos. Isto é a Índia. O dever de casa que me imponho é domar os sentidos, apaziguar um pouco estas algazarras, este soco nos olhos e nos ouvidos. Mas, felizmente, não conseguirei.
No Museu Arqueológico de Velha Goa, conheço a famosa estátua de Camões, que ficava no centro da antiga capital. Quando Goa é incorporada à União Indiana em 1961, depois de 451 anos de colonização, surge o dilema: que fazer com a estátua? Ela continua no centro de Velha Goa até 1983, quando decidem que é uma lembrança inaceitável da época colonial e, portanto, não pode continuar onde está. Alguns radicais propuseram explodi-la, quando autoridades houveram por bem removê-la para o museu. Penso esta estátua como uma metonímia do legado português em Goa. “Que faremos com esta estátua?”, perguntaram-se goeses desejosos de construir uma nova realidade que, por causa da colonização, esteve sempre de costas voltadas para a Índia. Que faremos com esta língua, com estes casarões, com estas igrejas e capelas que coalham a paisagem, com este chutney de bacalhau? Uma estátua até se explode, mas e o resto? E a Igreja de Bom Jesus, a do corpo incorrupto de São Francisco Xavier, visitada igualmente por cristãos e hindus descalços?
Não fui a Goa em busca de permanências de essências de uma cultura luso-tropical, porque isso não existe. São Francisco Xavier é um santo da Índia, como o catolicismo é já, hoje, uma religião, senão indiana, da Índia, uma delas, principalmente se levarmos em consideração as práticas religiosas banhadas de mestiçagem. O mesmo se dá com a língua portuguesa. Neste país que tudo recicla (“Na Índia não se desperdiça nada, nem impérios caídos”), a “Índia Latina” é cheia de indianidades, já é abarrotada de “Indian style”, de que o trânsito é ótimo exemplo. Na motocicleta viaja a família: marido e mulher, entre eles três filhos. Os carros, os ônibus, os rickshaws, as vacas, os pedestres, as lambretas, os búfalos. Faltam calçadas e sinais de trânsito. Uma rua estreita é de mão dupla. Veículos cruzam-se e milímetros os separam. Tiram tinta do retrovisor a todo instante. Please horn. Blow OK Horn. São milhares e milhares de deuses. Ainda que um se distraia, sempre haverá um outro atento.
Já próximo de encerrar a viagem, um vendedor de castanhas de caju me pergunta se sou indiano. Não posso crer em sua pergunta. Ele, que é de Gujarat, só pode estar troçando deste brasileiro que, apesar de muito sol goês, é assaz branquinho, denunciando sangues de Domingues e von Sydows que o geraram. Mas ele falava sério. Na verdade, já haviam me dito isto: passado um ano na Índia, eu me tornaria indiano. Para este simpático vendedor de castanhas, bastou um punhado de dias…
No último dia, deixamos que as recepcionistas do hotel, em meio a gostosas risadas, pintassem em nossas testas o rubro cucume, tão caracteristicamente indiano, que exibimos, felizes, triunfais, por todo o hotel, por toda Pangim. Se um outro vendedor de caju me aparecesse e fizesse a mesma pergunta: “Você é indiano?”, hoje responderia: “Um pouco.” E é provável que eu termine esta tese mais indiano do que quando a comecei. Nas palavras de Gruzinski, “o privilégio de se pertencer a vários mundos numa só vida”.
Talvez seja o encantador de serpentes!
Mas nosso olhos não chegam a esses lugaresDe onde vem sua música.
(São uns lugares de luar, de rio, de pedra noturna,onde o sonho do mundo apaziguado repousa.)
Mas talvez seja ele. (Cecília Meireles)
Se foste criança diz-me a cor do teu paísEu te digo que o meu era cor de bibeE tinha o tamanho de um pau de gizNaquele tempo tudo acontecia pela primeira vezAinda hoje trago os cheiros no narizSenhor que a minha vida seja permitir a infânciaembora nunca mais eu saiba como ela se diz (Ruy Bello)
Sua voz quase imperceptívelparecia cantar – parecia rezare apenas suplicava.E tinha o mundo em seus olhos de opala. (Cecília Meireles)
Este povo que se basta a si próprio, seja na graça como na desgraça, está condenado a encontrar os caminhos do seu destino, dê por onde der! (Orlando da Costa)
No fim do mundo estava o princípio da minha vida. Mas eu ainda não sabia. (Francisco Camacho)
Evandro Domingues terminou o Doutorado em abril deste ano, mas a paixão por Goa continua. Em janeiro próximo, porém, não volta, já que se prepara para uma viagem maior: vai ser pai.
Fonte: Pequena Morte
7 comentários:
Adoro esses relatos de viagem! É muito interessante saber como cada pessoa enxerga o outro, a cultuar, a língua, os hábitos do outro. Principalmente quando se trata da Índia, que já abre brecha para uma série infinita de possibilidades malucas. Por sinal, Potira, você já foi à Índia?
Bjs!
Pois é Flor, os teus comentários sempre me fazem escrever um novo post dentro da postagem maior... hauhuauha
Eu adoro relatos de viagem, tenho uns materiais sobre viajantes portugueses chegando na costa do Malabar na Índia nos séculos XVI e XVII que são incríveis...
Mas também há casos (bem mais recentes) em que percebemos no viajante uma ignorância tão grande e a total falta de tolerância e respeito que o resultado é problemático. Cheio de preconceito, com intolerância e fundamentalismo religioso, ingorância extrema, dificuldades para reconhecer e respeitar formas diferentes de vida e de organização social.
Eu estou planejando minha viagem e estada para o mais breve possível e pelo maior tempo disponível... huahuauha...
Não quero dizer que precisa ser um etnólogo pra fazer uma viagem, mas precisa um mínimo de conhecimento. Ninguém volta o mesmo de uma viagem, mas nem todo mundo está preparado para uma viagem à India. Muitos dos que vão para lá, fazem relatos tão ridículos e preconceituosos que mostram apenas a sua própria incapacidade de ver o diferente. E ainda existem aqueles que são ignorantes ao cubo, porque se limitam a ler estas visões preconceituosas e colaborar para a propagação das mesmas... Estes mereciam nascer, viver e morrer no mesmo lugar e sem nenhum contato com outros povos...
=D
Flor, sabe que eu tenho pavor daquela gentinha que depois que viu a "novelinha" ficou se achando indólogo e fica repassando aqueles e-mails com imagens da "India que a novela não mostra". Eles enviam imagens de Benares (Varanasi) e pseudo informações sobre os funerais hindus e repletos de preconceito e fundamentalismo religioso.
Tenho ganas de matar esta gente... uhauhauhaauh... Mas tenho que me controlar porque afinal, eles são tão estúpidos que nenhum dos livros, teses, estudos ou materiais de pesquisa que eu pudesse disponibilizar poderia fazê-los conhecer para respeitar o diferente. Eles estão tão cegos com "lavagem cerebral" que nem mesmo uma experiência de viagem e vivência de alteridade seria suficiente para ampliar sua visão de mundo.
Eu desconfio que este material é disponibilizado por alguns infelizes que não estavam preparados (e portanto tiveram péssimas experiências na Índia)ou que tiveram algum problema pessoal traumático relacionado à India.
Então, estes se reúnem com uma multidão de fanáticos religiosos (em sua maioria cristãos de países ocidentais e de doutrinas "evangélicas") os quais acreditam que sua "missão" na terra é a conversão forçada por meio da persuasão de todo e qualquer ser vivo à sua crença religiosa. Que são ignorantes ao ponto de não perceberem as religiões como criações históricas HUMANAS e dinâmicas.
Então, este bando de malucos são os responsáveis por capitanear lotes de materiais com distorções e preconceitos à fim de convencer seus pares a patrocinar "expedições" com o objetivo de levar luz à escuridão e civilização aos bárbaros.
No auge do seu etnocentrismo, eles acham que necessitam converter os indianos e "resgatá-los" das suas práticas. Isto, ao invés de viajarem com a meta de conhecer, estudar, questionar e aprender com o diferente.
Tem gente que faria um bem maior a si mesmo e a humanidade se permanecesse com seus pés bem plantados no "seu" chão, com uma viseira para que não vejam nada diferente ao redor e um espelho para refletir sempre a sua mesma imagem até a exaustão.
=(
Oi Potira!
Menina, seu comentário-post ficou bem apimentado! rs... Mas não deixo de concordar contigo em muitos aspectos.
Como certa vez eu comentei contigo, a India nunca me despertou, até então, encanto a ponto de estudá-la ou conhecer mais sobre ela, mas as circunstâncias me levaram até lá e digo com muita sinceridade, senti-me como se estivesse em casa.
A India é o lugar perfeito para exercitar um outro olhar, novas perspectivas e, sobretudo, descobrir-se, pois a maior viagem que se pode fazer lá é a viagem para dentro de si.
Bj
Mirelle
lavou-me a alma!
um grande abraço,lúcida garota!
Uma honra ter texto e fotos citados aqui.
Potira, entre em contato. Quero te contar coisas.
Abraço.
Mirelle,
Amei isto que tu escreveu " pois a maior viagem que se pode fazer lá é a viagem para dentro de si."
=)
Grandes abraços Patrícia!!!
=)
Evandro... A honra é toda minha de ter o seu comentário por aqui... Espero que tenha gostado da "divulgação"... Adorei o teu blog e as postagens sobre o teu Dante...
=)
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