Postagem especialmente para as minhas queridíssimas colegas das aulas de Literatura. Espero que gostem...
Poética
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.
Vinícius de Moraes
Poética me faz pensar sobre a História. Não esta História factual que liga tempo e espaço de maneira a datar acontecimentos “fatos históricos”, forçando uma linearidade inclusive quando este recurso é desnecessário. De um ponto de vista “racional” jamais se pode morrer ontem e nascer amanhã. Salvo os paradigmas religiosos sobre reencarnação, as pessoas nascem e morrem, nesta ordem. Estes versos de Vinícius de Moraes são uma desconstrução da linearidade e fogem a nossa lógica. Um poema tem esta liberdade de não se limitar com Tempo e Espaço, duas variantes não cartesianas...
Gosto da ambigüidade e das metáforas neste poema. As duas últimas estrofes me fazem pensar sobre a possibilidade de desejar que o impossível aconteça e de mobilidade, do ato de mover se e das mudanças. Questionar-se sobre o tempo traz mesmo que implícito uma pitada de “quando” porque o “quando” sempre faz referência a um recorte temporal. Dessa maneira, os quatro primeiros versos podem ser metáforas sobre as fases da nossa vida. Com o acréscimo dos elementos tardo e ardo, possibilitam múltiplas interpretações e conexões com outras obras.
Sobre os outros que irão contar passo por passo, estes “outros” somos nós, os historiadores. Somos nós, os outros, que registramos estes passos e fazemos disto a matéria de nosso estudo. Passos estes que podem ser anônimos, que podem ser registrados das mais variadas formas. Passos cujos vestígios nós buscamos na arquitetura, na arte, na literatura, nos arquivos, nos museus, nas esquinas, nas ruas, na antropologia e na vida cotidiana.
Desde que eu li este poema pela primeira vez, me identifiquei imediatamente com o trecho O este é meu norte. O norte da bússola é o ponto de referência para que saiba onde você está e para onde precisa seguir para estar no seu caminho. A bússola aponta o norte mesmo que você esteja se deslocando em sentido oposto.
O Este neste trecho do poema significa Leste ou Oriente, uma coordenada geográfica que por si só já nos direciona para uma série de imagens... Como escreveu Edward Said na obra Orientalismo nós ocidentais temos uma visão sobre o Oriente que foi construída num processo de longa duração. Gosto de repensar a alteridade em relação ao olhar de estranhamento que temos sobre o Outro em oposição ao Eu. A arte e a literatura trouxeram muitas destas referências que povoam o imaginário sobre o “Oriente” e elas dizem mais sobre nós mesmos do que sobre o outro.
Mesmo antes de decidir minha profissão e antes de começar a minha trajetória para tornar-me historiadora eu já tinha interesse pela História, Literatura e Arte vindas do oriente. Na minha bússola o Oriente é o ponto de referência e direciona os meus passos durante o tempo em que estou vivendo o meu “quando”. O este é meu norte tem um sentido singular para mim.
*Devaneio sobre um poema de Vinícius de Moraes para a disciplina de Literatura Brasileira III, para o professor Norberto.
4 comentários:
Vou confessar que nao sou fa de poesia, gosto de ciencia, de coisas mais preto no branco, nao tenho muita paciencia para ficar "devaneando" sobre um poema.
Mas depois que li o que tu escreveu sobre este poema em particular, ele tornou-se muito mais interessante aos meus olhos :-)
Muito bem escrito! Parabens!!
bjos
Fernanda
Tu conseguiste aproximar literatura e história de forma impressionante. Teu devaneio ficou belíssimo, queridíssima.
Fernanda e Dóris, queridíssimas!!!
Fico extremamente feliz que vocês gostaram...
Eu confesso que adoro poemas mas nunca tinha ousado "devanear" sobre eles de forma escrita e muito menos publicar aqui no blog...
Obrigada pelo carinho e pelos elogios.
=)
putz! que baita devaneio!
Eu, como Viniciano assumido, fiquei todo bobo. O que tu escreveu, parece, que é a explicaçao do poema pelo próprio poeta (apesar, de que como ja dizia o Mário [Quintana], "poema nao tem resumo nem explicaçao, poema já é o resumo"), parece que é o próprio Vinicius de Moraes falando sobre que cada pessoa tem um "este" e um "quando". Cada um tem o seu próprio, no seu mais íntimo "eu", ou, como diria Jung, no seu "Satã".
Eu acho merecido de uma publicação em uma revista de literatura e artes.
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