Ultimamente foram apontadas diversas críticas à obra de Monteiro Lobato quanto aos negros e a questão do racismo. Mas alguém já pensou sobre como o autor trata a cultura indiana em Histórias do Mundo para Crianças? O livro publicado em 1933 pretende abordar a história do mundo através de uma linguagem simples, para as crianças.
Algum estudioso da obra de Lobato poderia verificar se há alguma relação entre a publicação do Histórias do Mundo para crianças e as traduções que o autor fez para a coleção História da Civilização de Will Durant, pela Cia Editora Nacional.
Algum estudioso da obra de Lobato poderia verificar se há alguma relação entre a publicação do Histórias do Mundo para crianças e as traduções que o autor fez para a coleção História da Civilização de Will Durant, pela Cia Editora Nacional.
Leia o diálogo de Dona Benta com as crianças do Sítio do Pica-Pau Amarelo e tire suas próprias conclusões:
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-Que horror! - exclamou . - Parece incrível tanta burrice e maldade na vida dos homens.
- Assim é, minha filha, e nenhuma burrice tão dolorosa como esta distinção de castas que até hoje faz a desgraça da Índia. Entre as castas indianas, a mais alta de todas era a dos Guerreiros e Governadores, que quase se confundiam, porque para ser governo [sic] era preciso ser guerreiro. Depois vinha a casta dos brâmanes, com funções muito semelhantes às dos sacerdotes egípcios; eles eram o que hoje chamamos homens profissionais - médicos, advogados, engenheiros, etc. Depois vinham os agricultores e comerciantes - os padeiros, os vendeiros, os fruteiros. Depois vinha a gente baixa - isto é, gente ignorante que só sabe fazer serviços brutos - carregar coisas, cortar paus, capinar o chão. E por último vinha a casta dos Párias desprezada por todas as outras. Pária quer dizer gente na qual não se pode tocar nem a ponta do dedo - por isso são também chamados os Intocáveis.
- E parece que até hoje é assim, não, vovó? - observou Pedrinho.
- Até hoje é assim, meu filho, por mais que os ingleses dominadores da Índia tudo façam para mudar a situação. Anda lá agora um grande indiano querendo destruir o terrível preconceito de casta.
-Gândi - adiantou Pedrinho - que lia os jornais diariamente. - O Maatma Gândi...
- Ele mesmo. Mas sua luta vai ser enorme, porque o preconceito de casta é velhíssimo e as coisas muito velhas adquirem cerne, tal qual as árvores.
- Mas os indianos acreditavam num deus chamado Brama; daí a sua religião ser chamada Bramanismo. Segundo o bramanismo, quando uma pessoa morre a alma passa a habitar o corpo de outra pessoa ou dum animal; se a pessoa foi boa em vida, sua alma recebe promoção indo para o corpo de uma criatura de casta superior; se foi má, é rebaixada - vai até para os corpos dos bichos comedores de carniça, como o crocodilo ou o urubu.
Os mortos não eram enterrados e sim queimados. Se o defunto fosse homem casado, também queimava a viúva. As coitadas não tinham o direito de continuar vivas depois da morte do marido...
- Que desaforo! - exclamou Narizinho indignada. - Quer dizer que mulher nesse país não era gente - não passava de lenha...
- Por muito tempo foi assim, mas se era a mulher que morria, o viúvo, muito lampeiramente, ia arranjando outra...
- Por que em toda parte essa desigualdade das leis e costumes, vovó? Por que tudo para o homem e nada para a mulher?
- Por uma razão muito simples. Porque os homens, como mais fortes, foram os fabricantes das leis e dos costumes - e sempre trataram de puxar a brasa para a sua sardinha. Mas voltemos à Índia. Os templos bramânicos abrigavam uns ídolos verdadeiramente horrendos de feiúra. Deuses de diversas cabeças, deuses com seis e oito braços e outras tantas pernas; deuses com tromba de elefante; deuses com chifre de búfalo.
- Mas a senhora disse que eles só tinham um deus, vovó...
- Um deus supremo. Os outros eram deuses menores - espécie de santos. Povo nenhum se contenta com um deus só. São precisos vários, mesmo para os que seguem as religiões chamadas monoteístas.
- Mono, um; theos, deus, Religião monoteísta quer dizer religião dum deus só - berrou, com espanto de todos, Pedrinho, que por acaso havia lido aquilo um dia antes.
- Perfeitamente! - aprovou Dona Benta. - Você às vezes até parece um dicionário...
- Dê-lhe chá de hortelã bem forte que ele sara, Dona Benta. Isso são bichas - gritou lá do seu canto a pestinha da Emília.
Ninguém achou graça e Dona Benta continuou:
- Lá pelo ano de 500 A.C. nasceu na Índia um príncipe de nome Gautama, que se revoltou contra o que via em redor de si - tanta miséria e sofrimento por causa de idéias erradas. E apesar de nascido na grandeza, tudo abandonou para trabalhar pela melhoria do pobre povo, começando a pregar por toda parte os seus princípios. Ensinava o homem a ser bom, a ser honesto, a ajudar os infortunados. Tão altas eram as idéias desse príncipe, que o povo entrou a chamar-lhe Buda, que quer dizer Sábio, e por fim o adorou.
Uma nova religião nasceu daí. Muitos que seguiam o bramanismo abandonaram os horrendos ídolos desse culto para se tornarem budistas."
- Ele mesmo. Mas sua luta vai ser enorme, porque o preconceito de casta é velhíssimo e as coisas muito velhas adquirem cerne, tal qual as árvores.
- Mas os indianos acreditavam num deus chamado Brama; daí a sua religião ser chamada Bramanismo. Segundo o bramanismo, quando uma pessoa morre a alma passa a habitar o corpo de outra pessoa ou dum animal; se a pessoa foi boa em vida, sua alma recebe promoção indo para o corpo de uma criatura de casta superior; se foi má, é rebaixada - vai até para os corpos dos bichos comedores de carniça, como o crocodilo ou o urubu.
Os mortos não eram enterrados e sim queimados. Se o defunto fosse homem casado, também queimava a viúva. As coitadas não tinham o direito de continuar vivas depois da morte do marido...
- Que desaforo! - exclamou Narizinho indignada. - Quer dizer que mulher nesse país não era gente - não passava de lenha...
- Por muito tempo foi assim, mas se era a mulher que morria, o viúvo, muito lampeiramente, ia arranjando outra...
- Por que em toda parte essa desigualdade das leis e costumes, vovó? Por que tudo para o homem e nada para a mulher?
- Por uma razão muito simples. Porque os homens, como mais fortes, foram os fabricantes das leis e dos costumes - e sempre trataram de puxar a brasa para a sua sardinha. Mas voltemos à Índia. Os templos bramânicos abrigavam uns ídolos verdadeiramente horrendos de feiúra. Deuses de diversas cabeças, deuses com seis e oito braços e outras tantas pernas; deuses com tromba de elefante; deuses com chifre de búfalo.
- Mas a senhora disse que eles só tinham um deus, vovó...
- Um deus supremo. Os outros eram deuses menores - espécie de santos. Povo nenhum se contenta com um deus só. São precisos vários, mesmo para os que seguem as religiões chamadas monoteístas.
- Mono, um; theos, deus, Religião monoteísta quer dizer religião dum deus só - berrou, com espanto de todos, Pedrinho, que por acaso havia lido aquilo um dia antes.
- Perfeitamente! - aprovou Dona Benta. - Você às vezes até parece um dicionário...
- Dê-lhe chá de hortelã bem forte que ele sara, Dona Benta. Isso são bichas - gritou lá do seu canto a pestinha da Emília.
Ninguém achou graça e Dona Benta continuou:
- Lá pelo ano de 500 A.C. nasceu na Índia um príncipe de nome Gautama, que se revoltou contra o que via em redor de si - tanta miséria e sofrimento por causa de idéias erradas. E apesar de nascido na grandeza, tudo abandonou para trabalhar pela melhoria do pobre povo, começando a pregar por toda parte os seus princípios. Ensinava o homem a ser bom, a ser honesto, a ajudar os infortunados. Tão altas eram as idéias desse príncipe, que o povo entrou a chamar-lhe Buda, que quer dizer Sábio, e por fim o adorou.
Uma nova religião nasceu daí. Muitos que seguiam o bramanismo abandonaram os horrendos ídolos desse culto para se tornarem budistas."
LOBATO, Monteiro. O outro lado do mundo In: Histórias do Mundo para Crianças. São Paulo: Brasiliense, 2004. (Pág.41-43)
7 comentários:
Olá! Potira,
Acho que temos que ver a obra
de Monteiro Lobato no contexto
da época em que foi escrita.
Acontece que as críticas surgem
agora, porque vivemos a época
do "politicamente correto".
Gostei do seu post. O trecho
apresentado foi oportuno.
Sou CRISTINA SÁ do blog:
http://cristinasaliteraturainfantilejuvenil.blogspot.com
O pouco que li de Lobato, achei absurdo. Nao entendo como as pessoas consideram-no um canone da literatura infantil do Brasil. Eh racismo demais pra minha pobre cabecinha.
Cristina,
Eu já conheço o teu blog e sempre dou uma passadinha por lá...
Claro que seria anacronismo querer que um autor do século XX expressasse a mesma visão que temos hoje no século XXI em relação ao racismo. Cabe aos mediadores da leitura apontar o contexto histórico-social do Lobato e etc etc...
Mas o que me deixa "com a pulga atrás da orelha" é a relação entre o "História da Civilização" de Will Durant e esse "Histórias do Mundo para Crianças"... Tenho ambos aqui comigo e estou esperando uma oportunidade de comparar as representações neles para ver se essa visão de mundo um tanto quanto imperialista é original do Lobato ou ele reproduz outras leituras.
=D
Flávia,
Eu ainda vou publicar aqui mais dos "Poemas escritos na Índia" da Cecília Meireles, pra gente ver que alguns anos após Lobato a fabulosa Cecília nos apresenta uma Índia completamente diferente...
=)
Série História da Índia, produzida pela BBC, episódio Liberdade. Às 19:30 na tv cultura, hoje!!
Vi e lembrei de você!
Obaaa!!!
Será que é aquela mesma do Michael Wood que eu tenho em DVD?
Obrigada por avisar Andressa.
=)
já foi viciada nas obras de Lobato. entretanto nunca tinha ouvido falar do preconceito em referencia aos indianos no desenho; o que mais achei banal foi a parte q fala que "por mais que os ingleses dominadores da Índia tudo façam para mudar a situação" em relação as castas.
com este texto ele esmagou a cultura e religião da Índia como se fosse inferior a dos ocidentais brancos da época.
Ótimo post, bjs de sua aluna Débora
Pode crer Débora!!!
Tu chegastes exatamente no X da questão...
Beijokas da profe que te adora!
=)
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