"[...] Ritu tinha passado toda a gravidez desejando ter um menino, como todas as mulheres da Índia. Nove meses imaginando as festas e as cerimônias que anunciavam o nascimento de um herdeiro, nove meses rezando aos deuses para que não fosse menina. O nascimento de uma menina era sempre uma desgraça, um mau presságio para a família, alguns acreditavam. Os parentes e vizinhos se aproximavam da casa compungidos, para desejar-lhes "boa sorte da próxima vez". Uma menina era um fardo até que fosse possível casá-la. Ritu demorou muito a ficar grávida de novo. Finalmente, cinco anos depois, Sita nasceu.
As súplicas e as pujas não serviram de nada dessa vez: outra menina nasceu. Uma vizinha que ajudara no parto sugeriu afogá-la num balde de água imediatamente. No campo, muitas recém-nascidas eram sacrificadas em poucos minutos pelo bem de todos. Mas Nadira, a filha mais velha do marido de Ritu, impedira-o."
(pág. 45-46)
"Chamki era a cozinheira e quem decidia como se preparava cada coisa. Sabia muito e Muna só tinha que seguir suas ordens para que tudo ficasse bom. Era uma especialista na cozinha Kerala, que ela dizia ser a melhor da Índia. Conseguira que os Raghavan lhe dessem razão e sempre lhe pedissem os pratos de sua terra do sul, que já faziam parte das comidas habituais da família. Assim, então, Muna se cansava de ralar coco, porque as receitas de Kerala sempre levavam coco, seja para fazer os molhos de curry ou de sambar, o molho mais típico do sul para comer com o arroz. E também para preparar o chutney de coco, uma espécie de geléia espessa que servia com as massala dosas, os crepes fritos de arroz com purê de batata por cima. Cortar, picar, ralar, fritar pappadams de farinha de lentilhas... Na cozinha, ouvia-se o tilintar enérgico das pulseiras de Chamki, que não parava quieta. E Muna também não. A casa tinha sempre um cheiro agradável de coco e cebola frita."
(pág. 68-69)
"Sobre a mesa da sala de jantar ficaram apenas os presentes que Pilar trouxera para eles de Paris: um disco de Ravi Shankar que, segundo ela, era imprescindível escutar para se aproximar da Índia, e um livro muito grande de capa dura com retratos de meninos e meninas indianos em preto-e-branco. Escutariam a cítara de Ravi Shankar e olhariam as fotos do livro com calma mais de uma vez."
(pág. 110)
"- Quer escutar alguma música?
- Sim, coloque o disco de Jagjit Singh, por favor.
- É pra já, senhora Kulkarni."
(pág. 175)
"(...) Nasik era uma cidade pequena e muito sagrada. O rio Godavari era o centro da atividade. Nos ghats, a toda hora havia mulheres lavando roupa. Estendiam os saris coloridos bem esticados no chão. Retângulos de cor laranja, rosa-choque, vermelho, turquesa... Grandes cartazes lembravam a celebração do Kumba Melah que ocorrera havia quase um ano. Era uma das peregrinações mais multitudinárias do mundo, celebrada periodicamente em diferentes cidades indianas. A cada treze anos era a vez de Nasik e Trimbak, uma cidade próxima."
(pág. 185)
"(...) Ignorara uma realidade que, pelo visto, os estrangeiros conheciam mais do que os próprios indianos, obcecados em prosperar, em conseguir que a Índia chegasse a ser uma das potências da indústria do cinema e da informática, em ter uma boa antena parabólica no telhado, em estudar nas melhores universidades do mundo. Havia muitas Índias dentro da Índia. No mínimo duas: Índia e Bharat Varsh, o nome do país em hindi. Índia foi o nome que os colonizadores britânicos lhe deram a partir do Hindustão, a denominação do país na língua urdu. Ela não conhecia ou não queria conhecer a realidade de Bharat Varsh, conhecida por boa parte do mundo e que tanto lhe custava assumir."
(pág. 186)
Miró, Asha. Soler-Pont, Anna. O rastro do sândalo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
Photo by Meena Kadri
3 comentários:
Que lindo isso...
Nossa..o primeiro foi o mais tocante...
Gostei bastante, hein! Cultura nunca é demais! Esse sobrenome, o "Kulkarni"... É bem comum na Índia? Tem algum significado?
Chris, vale a pena procurar este livro e dar uma lida... O pessoal fica só naqueles romances do Javier Moro e esquece que tem muuuuuuuuuito mais pra ler sobre a Índia. Aliás, tô devendo pras gurias uma postagem crítica em relação aos livros do cara...
Tenha um bom fim de semana!
=)
Mirella, cada nome e sobrenome na Índia tem um significado, assim como os nossos nomes, só que muitas vezes nós não procuramos os significados...
Entre os indianos eles se identificam pelos sobrenomes. Tradicionalmente pelo sobrenome eles sabem dizer de que região da Índia a pessoa é e quais eram as profissões que tradicionalmente esta familia desempenhava (em alguns casos ainda desempenha)...
Não sei te dizer o significado nem de que lugar é. Eu arriscaria dizer que é do estado de Maharashtra, talves até Mumbai, mas não é um sobrenome assim tão conhecido, existem outros muito mais comuns e mais famosos...
=D
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