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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Macunaíma...





“Tem mais não.” (ANDRADE, 1978, p. 148)




ANDRADE, Mario. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: LTC, 1978.

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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Música & Budismo

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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O niilismo Dadaísta


Dada é nada


A vanguarda artística sobre Arte, Antiarte, Niilismo e Nonsense...


“O nome Dada também é casual, escolhido abrindo-se um dicionário ao acaso. As manifestações do grupo dadaísta são deliberadamente desordenadas, desconcertantes, escandalosas; a práxis é semelhante à do Futurismo e das vanguardas em geral, mas no caso do Dadaísmo trata-se de uma vanguarda negativa, por não pretender instaurar uma nova relação e sim demonstrar a impossibilidade e a indesiderabilidade de qualquer relação entre arte e sociedade.” (ARGAN, 1992, p. 355-356)

“Dadá não significou um movimento artístico no sentido tradicional: foi uma tempestade que desabou sobre a arte daquela época como uma guerra se abate sobre os povos. Esta tempestade descarregou sem aviso prévio, numa atmosfera abafada de saciedade... e deixou atrás de si um dia novo, no qual as energias que se concentravam no Dadá e dele emanavam se documentavam em formas novas, materiais novos, idéias novas, direções novas, pessoas novas, assim como se dirigiam a pessoas novas. (RICHTER, pág. 3)


Man Ray. O violino d’Ingres. (1924)


“ São os anos da Primeira Guerra Mundial, cuja mera conflagração pôs em crise toda a cultura internacional. Pôs em crise, ao lado dos demais valores, a própria arte; esta deixa de ser um modo de produzir valor, repudia qualquer lógica, é nonsense, faz-se (se e quando se faz) segundo as leis do acaso. Já não é uma operação técnica e lingüística; ela pode se valer de qualquer instrumento, retirar seus materiais seja de onde for. De fato não produz valor. Ela documenta um processo mental, considerado estético por ser gratuito. É nonsense no nonsense, mas positivo porque o comportamento do mundo, que pretende ser lógico e é insensato, é um nonsense negativo e letal. Todavia, o nonsense, o acaso também podem ter uma coerência e um rigor próprios. Desfinalizada e desvalorizada, a arte já não é senão um sinal de existência; significativo, porém quando tudo em redor é morte.” (ARGAN, 1992, p. 353)


Marcel Duchamp. Fonte (1917)
“[...]o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora, com o fito de colocar o sistema em crise, voltando contra a sociedade seus próprios procedimentos ou utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor.[...]” (ARGAN, 1992, p. 356)

Fonte:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
 RICHTER, Hans Georg. Dada: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 
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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Literalmente do fundo do baú...

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Por Potira

Tudo começou quando a minha mãe resolveu levar o antigo baú de madeira que estava no meu quarto para a nova casa na chácara. Sim, eu sei mãe, ele ficará muito melhor lá, onde acompanhará o mobiliário rústico de toda a casa do que aqui, na casa da "cidade". Mas eu vou sentir imensamente a falta do meu baú...

Esta relíquia centenária, herança de família, estava sendo usada para guardar alguns de meus livros e papéis... Revirando entre os recortes, dou de cara com este amarelado texto... Não sei porque o guardei tanto tempo no fundo do baú se na época ele não fazia nenhum sentido para mim...

Porém, mal sabia eu que não haveria momento mais propício para reencontrá-lo do que este. Quando reli eu tive vontade de dividir com minhas amigas e aqui está...

Literalmente do fundo do baú, guardado por mais de uma década:






AMORES INTRADUZÍVEIS
por Martha Medeiros


Uma amiga namorou por seis meses um norte-americano, nascido em Santa Barbara, California. Lá conheceram-se e por lá ela ficou. Apaixonou-se pelos olhos dele, pelos ombros dele, pelo gosto musical do gringo, que batia 100% com o seu. Passavam tardes inteiras ouvindo Joe Jackson, Elvis Costello e Neneh Cherry, apesar de ela não ter a mínima idéia do que diziam as letras. Seu inglês empacou no the book is on the table e não saiu disso. Ele, por sua vez, achava que no Brasil se falava espanhol, idioma que tampouco dominava. Zero problema. Nenhum dos dois estava mesmo a fim de papo. Beijavam-se adoidado, caminhavam juntos na beira do mar, andavam de bicicleta, tomavam cerveja nos bares e compartilhavam canções. Foram almas gêmeas por meio ano e tudo o que precisavam era dizer hello quando se encontravam e bye bye quando se despediam. O resto funcionava na base da mímica, do tato e do encanto. Mas não há amor que resista à mudez eterna. Ela resolveu voltar para o Brasil e não se correspondem por razões óbvias. Falar no telefone, nem pensar. The End.

Eis que minha amiga conhece outro cara, ao voltar. Paulista. Português fluente, como o dela. De certo modo, sentiu-se aliviada: ela poderia perguntar a ele o que achou de um filme, poderia conversar sobre as diferenças entre Lula e FHC, poderia deixar recados na secretária eletrônica e dizer coisas safadas no seu ouvido. Depois da greve de silêncio nos States, uau, ela soltaria o verbo. Foi então que aconteceu.

Parecia que um era do Zimbábue e o outro da Croácia. Ela não conseguia falar duas frases sem que ele retrucasse. Se ela dizia uma coisa carinhosa, ele achava que era ironia. Se ela falava sério sobre qualquer assunto, ele achava que era deboche. Se ela perguntava algo do passado dele, ele a chamava de paranóica. Se ela brincava com o cabelo dele, ele se ofendia. Completamente desintonizados.

Quando ele tentava melhorar o clima, também não funcionava. Se ele concordava com ela, ela achava que ele tinha aprontado alguma. Se ele prestava atenção ao que ela dizia, ela achava que era teatro. Se ele ria de alguma piada, ela achava que ele não tinha entendido. Se ele pedia o mesmo prato que ela no restaurante, ela dizia que ele não tinha personalidade. Se ele pedia um prato diferente, era porque estava criticando a escolha dela. Amor nenhum resiste ao desentendimento eterno. Acabou. Não se correspondem por motivos óbvios e falar no telefone, também, nem pensar.

Minha amiga procura novo namorado e espera ter mais sorte na próxima vez. Brasileiro ou estrangeiro, pergunto eu. Pouco importa, me responde ela, desde que ele venha com legendas.




(Porto Alegre, Jornal Zero Hora, 23 de junho de 1998)



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sábado, 17 de outubro de 2009

Boa Bahia - Bombaim - Mumbai

Dois textos do Le Monde Diplomatique sobre Mumbai:

O fascínio de Bombaim

Janeiro de 2004

Única metrópole indiana, Bombaim exerce uma atração mítica por ser o centro financeiro e econômico do país. Mas nesse pesadelo demográfico, onde encontra-se champanha pagando o preço – três vezes o salário da classe média – não se tem água potável para beber

"Bombaim é uma luta de todo instante, mas nós ficamos ligados na sensação do combate constante." (Jerry Pinto, poeta e jornalista)

Ninguém sabe com certeza quantos habitantes tem Bombaim. Os recenseamentos oficiais atestam 12 milhões de habitantes, dos quais a metade sem teto...Talvez sejam 16 milhões

A famosa (ou a infame) Bombaim? Reay Road, ao longo dos cais. Esta rua, que originalmente tinha quatro pistas, para permitir que os veículos rodassem depressa, agora só tem duas, orladas de um montão de casebres de vários andares. Os habitantes dos sloms (casebres), imigrantes do interior na maioria, andam, falam, dormem, sentam-se, trabalham, lavam-se e olham seus filhos darem os primeiros passos sobre o asfalto. A rua nunca teve calçadas e talvez nunca as terá. Reay Road tornou-se um lugar onde os homens e os veículos rivalizam. Uns e outros agem como se o seu espaço fosse um reino.
Sobre uma superfície de cerca de um quilômetro quadrado, muitos moradores de cortiço construíram dois ou três sótãos em cima de seus casebres e os alugam a outros. Cada casebre abriga em média dez pessoas. Ninguém sabe quantas pessoas vivem em Reay Road, mas sabe-se que o número aumenta todo dia, assim como o caos...
E para falar a verdade, ninguém sabe com certeza quantos habitantes tem Bombaim. Os recenseamentos oficiais atestam 12 milhões de habitantes (mais do que a Grécia), dos quais a metade sem teto... Mas devido ao fluxo ininterrupto de imigrantes, da população dos sloms e das crianças não registradas que nascem a cada dia, talvez sejam de fato perto de 16 milhões. E se esses números podem suscitar espanto, a triste verdade é que os habitantes de Reay Road e de outros bolsões de miséria que proliferam na metrópole não têm um lugar melhor para ir.

Sonho americano

Bombaim atrai todos os dias milhares de pessoas vindas do resto da Índia na esperança de encontrar a felicidade nesta "cidade da esperança"

Bombaim atrai todos os dias milhares de pessoas vindas do resto da Índia na esperança de encontrar a felicidade nesta « cidade da esperança », convencidos de que ali encontrarão um emprego, uma remuneração regular ou, porque não, de que tornar-se-ão milionários da noite para o dia. Para eles, estes barracos ilegais (muitas vezes equipados com ligações elétricas pirateadas, telefones e TV em cores, às vezes roubados) parecem mansões de luxo comparadas com o que conheciam onde nasceram.
Então eles sobrevivem ali, na rua, dia após dia, apesar da poluição, do calor insuportável, da desnutrição, da sujeira, do ronco dos caminhões e carros que passam à toda, dos acidentes, das doenças, dos ratos enormes e dos urubus, das sarjetas fedorentas, do nojo dos passantes melhor aquinhoados e das inundações provocadas pela monção. Felizes, pretendem alguns. Felizes, sim, de uma certa maneira, por terem conseguido chegar a esta cidade monstruosa, que pode tomar-lhes tudo ou dar-lhes a oportunidade de sua vida. Nunca chegaram tão perto de seu mini-sonho americano. Eis exatamente o que Bombaim representa aos olhos do resto da Índia.

Fluxo incessante

Se você é pobre, vive em condições inumanas. Se é rico (1% da população), a máfia lhe ataca constantemente. Para quem pertence às classes médias, sair de casa toda manhã é um combate

É preciso um certo tempo para compreender porque esta cidade continua a atrair um fluxo incessante de forasteiros que esperam ali fazer fortuna. Ela é desmesurada, asfixiante, superlotada, poluída, sufocante, atravancada, congestionada pelo tráfego e emana as visões e os odores mais aterrorizantes da pobreza e da doença. Se você é pobre, vive em condições inumanas. Se é rico (um por cento da população), a máfia lhe ataca constantemente. Para quem pertence às classes médias, sair de casa toda manhã é um combate – é preciso lutar contra os outros veículos, negociar o espaço da rua, tentar ignorar as mãozinhas implorantes que se agarram aos vidros do carro.
Nada se faz facilmente. Uma obrinha insignificante, a mínima coisa a organizar revela-se uma tarefa penosa. Corrupção e burocracia imperam. E no entanto, apesar das extraordinárias dificuldades da vida, Bombaim possui um moral surpreendente, qualquer coisa de invencível. Qualquer Mumbaikar1 lhe diz na hora: “De que o senhor se queixa? Bombaim é bem melhor do que as outras cidades!” Sente-se um calafrio diante da idéia de que um lugar na terra pode ser pior do que aquele.

Metrópole única

Os que têm a sorte de ter um emprego e de morar bem não podem viver sem Bombaim, de seu ritmo de vida desenfreado, dos salários – os melhores da Índia – de sua tolerância

Os que têm a sorte de ter um emprego e de morar bem não podem viver sem Bombaim, de seu ritmo de vida desenfreado, dos salários – os melhores da Índia – de sua tolerância, de seus modos de vida alternativos, de oportunidades sem fim oferecendo-se aos que ousam, cinemas, multiplexes e galerias comerciais regurgitantes de produtos importados, night clubs de fachada (cujos proprietários pagam muito bem a polícia para ficarem abertos depois da meia-noite), teatros, restaurantes gastronômicos a preços exorbitantes mas sempre lotados, vendedores de carros exóticos, telefones celulares, edifícios de escritórios que lembram Manhattan, torres habitacionais, lojas de criação, concursos de beleza, hotéis cinco estrelas, escolas internacionais, hospitais modernos e pontes para carros.
Tudo isso faz de Bombaim a única verdadeira metrópole da Índia. A seu lado, Chennai (Madras), Calcutá, Bangalore, a Silicon Valley indiana, ou mesmo a capital Nova Déli parecem medíocres cidades provincianas. Às vezes é difícil de compreender, mas estamos falando de um país em que a população rural parou no século XVIII ; nesse contexto, Bombaim parece um milagre, uma verdaeira cidade de sonho.

Capital das finanças

Trata-se da cidade mais próspera da Índia, sua capital das finanças e dos negócios. Mais da metade do imposto de renda nacional vem de lá. É também a aglomeração mais corrupta

Sem dúvida alguma, trata-se da cidade mais próspera da Índia, sua capital das finanças e dos negócios. Mais da metade do imposto de renda nacional vem de lá. É também a aglomeração mais corrupta do país: mais da metade do dinheiro sujo em circulação lá encontra sua fonte. Bombaim conta com mais milionários do que todas as grandes cidades indianas reunidas. É lá que acontecem 90% das transações bancárias comerciais da Índia, que se erguem duas torres que abrigam a bolsa, que são investidos 80% dos fundos mútuos do país, que estão os mercados de capitais. O Banco Central indiano, as três grandes redes bancárias e os dois maiores bancos comerciais da Índia estão implantados no bairro de negócios de Mumbai.
Quanto ao porto, garante 40% do comércio marítimo indiano. O setor imobiliário vale ouro e os preços ultrapassam os de Nova Iorque e Tóquio (um apartamento chique pode custar até dois milhões de dólares). A cidade dedica-se à especulação, à loteria, às corridas hípicas e ao críquete. Os virtuoses da publicidade são melhor remunerados que os médicos nesta cidade onde a « sociedade de consumo » nada tem a invejar à dos Estados Unidos. Ela atrai os melhores talentos do país, gigantes multinacionais, investidores, artistas e intelectuais.
Assim, as luzes de Bollywood são irresistíveis: Bombaim possui a maior indústria cinematográfica do mundo e todo indiano que quer fazer carreira no cinema se instala aqui. A tal ponto que as estrelas esquecidas do Ocidente assinam contratos para aparecer nos filmes hindis, na esperança de encontrar uma nova juventude. Aqui, os atores assemelham-se a deuses e jovens de todos os meios lutam para conseguir um pequeno papel. O pessoal do cinema mora em casas grandiosas em subúrbios barulhentos e vive sob o temor permanente de um telefonema de um chefão da máfia para extorquir-lhe dinheiro.

Imagem mítica

As histórias dos sucessos espetaculares enriquecem a imagem mítica de Bombaim. Como a do falecido Dhurubhai Ambani, um frentista que se tornou magnata da petroquímica

As histórias dos sucessos espetaculares enriquecem a imagem mítica de Bombaim. Como a do falecido Dhurubhai Ambani, um frentista que se tornou magnata da petroquímica; ou de Harshad Mehta, jovem pobre vindo da cidadezinha de Raipur, que organizou um golpe de 6 milhões de rúpias (4,84 milhões de euros) e dirigiu a bolsa (antes de ser encontrado morto na prisão); ou ainda a do ator preferido dos indianos, Shah Rukh Khan, que chegou a Bombaim de bolsos vazios e depois de anos de provações, sem conhecer ninguém na cidade nem no mundo do cinema, acabou por tornar-se um superastro.
Nesse pesadelo demográfico, encontra-se champanha pagando o preço – três vezes o salário de um membro típico da classe média – mas as pessoas não têm água potável para beber. Em Dharavi, a maior favela da Ásia, 600 000 pessoas se amontoam em menos de 1,5 quilômetros quadrados. O ar é pesado e pegajoso, carregado de odores de detritos, mas é ali que são fabricados os mais lindos objetos de couro que são exportados para o resto do mundo. As clínicas onde se faz regime e as academias para ficar em forma são mais numerosas do que as organizações não-governamentais. Existe um mercado florescente de obras de auto-ajuda e gestão, vendidas por crianças que não sabem ler.

“Filhos da terra”

Bombaim é cobiçada e temida, impiedosa e compreensiva. Nos jornais diários, exibem-se os crimes mais cruéis ao lado dos exemplos mais comoventes de companheirismo e compaixão.

Bombaim é cobiçada e temida, impiedosa e compreensiva. Nos jornais diários, exibem-se os crimes mais cruéis ao lado dos exemplos mais comoventes de companheirismo e compaixão. Devido talvez ao fato de muitos dos seus habitantes terem começado do zero, Bombaim sempre foi um refúgio de tolerância onde cristãos se misturam aos parsis2 , onde os hindus têm vizinhos muçulmanos, onde os sikhs, os jains3 , os judeus e mais e mais “phirangs” (termo corrente par designar os forasteiros) vivem juntos.
Mas o fluxo constante de “estrangeiros” e a mistura de culturas existente também fez nascer um monstro: o partido extremista hindu Shiv Sena4 , dirigido por Bal Thackeray, que defende os “filhos da terra”, tendo explorado no início a divisão entre locais e forasteiros antes de se lançar numa revolta contra tudo o que não seja maharashtriano5 . Este partido manifesta sua política de ódio provocando motins e atentados. Conseguiu até mudar o nome da cidade (Bombaim era no início uma colônia portuguesa e o nome significava “Baía linda”) para Mumbai (por causa da deusa protetora da cidade), uma maneira de dizer ao mundo que a cidade pertence aos seus ocupantes maharashtrianos originais e os “estrangeiros” não têm nada a fazer ali.

Rechaço aos “imigrantes”

A mistura de culturas existente também fez nascer um monstro: o partido extremista hindu Shiv Sena, dirigido por Bal Thackeray, que defende os “filhos da terra”

Para provar sua determinação de rechaçar os “imigrantes”, um bando de Sainiks6 recentemente saqueou o escritório do serviço de recrutamento das estradas de ferro reclamando cotas de emprego para os maharashtrianos7 , que se sentiriam ameaçados diante dos candidatos vindos do norte da Índia. Alguns dias mais tarde, em uma estação muito freqüentada, trabalhadores do Shiv Sena, entre os quais mulheres sainik, atacaram jovens Bihari8 vindos a Bombaim fazer concurso para trabalhar nas estradas de ferro.
Os resultados da pesquisa feita pelo Times of Índia e um programa de televisão popular, “The Big Fight” (a grande luta ) não são tranqüilizadores: uma maioria pensa que o Shiv Sena tem razão e uma enorme porcentagem aprova sua política dos “filhos da terra”. Entre as pessoas interrogadas, muitas pronunciaram-se “a favor” de que sejam fixadas cotas favorecendo os naturais no acesso aos empregos não-qualificados. Certas pessoas pensam, todavia, que tais cotas prejudicariam a imagem da cidade como centro financeiro de nível internacional.
Bombaim, a cosmopolita, vai tornar-se Bombaim, a chauvinista? No entanto, escreve Suketu Mehta, um jornalista que cresceu em Bombaim e vive hoje em Nova Iorque, “se você se atrasar para ir trabalhar em Bombaim e chegar à estação no momento em que o trem sai da plataforma, você pode correr para os compartimentos lotados e muitas mãos vão-se estender para puxá-lo para dentro [...] enquanto você corre junto do trem, vão levantar você e vão dar um lugarzinho para os seus pés[...] Depois você tem que se virar [...] No momento do contato, eles não sabem se a mão que está tentando segurar a deles é a de um hindu, de um muçulmano, de um cristão, de um brâmane9 ou de um intocável10 , nem se você nasceu na cidade ou se você chegou hoje de manhã [...] nem se você é de Mumbai, de Bombaim ou de Nova Iorque. Tudo o que eles sabem é que você está tentando chegar à cidade de ouro e isso basta. Suba, dizem. A gente se aperta11 ”.
(Trad.: Maria Elisabete de Almeida)
1 - Morador de Mumbai, nome da cidade de Bombaim desde meados dos anos 1990 (N.T.).
2 - Grupo étnico de origem persa cuja religião é o zoroastrianismo. 70% dos Parsis vivem em Mumbai (N.T.).
3 - Fiéis, espalhados por toda a Índia (principalmente no oeste e no sudoeste), do jainismo, religião reformista próxima do hinduísmo e do budismo.
4 - Aliado do Partido do Povo Indiano (BJP), no poder em Nova Déli.
5 - Natural do Mahrashtra, estado indiano situado a oeste da Índia, terceiro em população no país (N.T.).
6 - Militantes do Shiv Shena.
7 - Bombaim é a capital do Mahrashtra.
8 - Naturais do estado de Bihar, no nordeste da Índia (N.T.).
9 - Membro da casta superior, dos religiosos (N.T.).
10 - Indianos descendentes de africanos escravizados e auto-denominados "Dalit”. Os Dalit ou intocáveis estão excluídos do sistema de castas e são segregados na Índia (N.T.).
11 - Extraído do livro Meri Jaan, (Bombay, mon amour), Penguin Books India, Delhi, 2003.

fonte: http://diplo.uol.com.br/2004-01,a839




Mila Kahlon, para o Le Monde Diplomatique



Publicado em Porto Alegre 2003: 13/01/2004





Imagem: Dharavi Slum, Mumbai (http://www.travelblog.org/Photos/267564.html)





Mumbai, a famosa Reay Road, ao longo das docas. Esta avenida, que tinha no início quatro pistas, para oferecer velocidade aos automóveis, está cercada por uma infinidade de slums (barracos) de vários andares. Seus habitantes - migrantes vindos do interior, na maioria - andam, conversam, dormem, descansam, trabalham, lavam-se e vêem seus filhos ensaiar os primeiros passos no asfalto. Reay Road tornou-se um lugar onde os automóveis e os seres humanos rivalizam. Uns e outros fazem da rua seu reino.
Sobre uma superfície de cerca de um quilômetro quadrado, parte dos moradores da favela construiu dois ou três (greniers) sobre suas cabeças, e os alugam aos novos pobres que chegam. Cada barraco abriga em média dez pessoas. Ninguém sabre quantos miseráveis vivem em Reay Road, mas a cifra aumenta a cada dia, como o caos.
E, na verdade, ninguém sabe quantos habitantes tem hoje Mumbai. Os recenseamentos oficiais falam em 12 milhões de pessoas (mais que a Grécia), dos quais a maioria é de sem-tetos. Mas em virtude do fluxo ininterrupto de migantes, da população favelada e de centenas de crianças não-declaradas que nascem tdos os dias, é possível que o número real esteja próximo de 16 milhões.
O mini-sonho norte-americano
Se as cifras assustam, a verdade é que os habitantes de Reay Road e de outros bolsões de miséria que preoliferam não têm lugar melhor aonde ir. A metrópole atrai todos os dias milhares de pessoas vindas do resto do país para cruzar as fronteiras desta “cidade de esperança”, convencidas que lá encontrarão um emprego, uma ocupação regular ou - por que não? - a chance de se tornar milionários. Para essa gente, as provas materiais de sucesso (a eletricidade pirateada, o telefone ou a televisão muitas vezes roubados) dão a suas casas o ar de vilas de luxo, em relação ao que conheceram e viveram na terra em que foram criados.
Por isso sobrevivem aqui, na rua, dia após dia, apesar da poluição, do calor insuportável, da desnutrição, da sujeira, da sujeira dos caminhões, dos acidentes, das doenças, dos ratos enormes, do desgosto dos pedestres com mais sorte e das cheias provocadas pelas monções. Felizes, dizem alguns. Felizes? Sim, de certa maneira. Por terem chegado a esta cidade monstruosa, que pode tirar-lhes tudo ou lhes dar a oportunidade de suas vidas. Eles nunca se aproximaram tanto de seu mini sonho norte-americano. Eis exatamente o que Mumbai representa aos olhos do resto da Índia.
Demora um certo tempo para entender por que esta cidade continua a atrair um fluxo incessante de forasteiros que esperam fazer fortuna. Ela não tem limites; é poluída, sufocante, encoberta, congestionada pelo trânsito. Emana as visões e odores mais repugnantes da pobreza e da doença. Quem é pobre, vive em condições sub-humanas. Quem é rico (1% da população) é constantemente ameaçado pela máfia. Quem integra a classe média vive a cada dia, a partir do momento em que sai de casa, um combate: é preciso enfrentar os outros automóveis, ignorar as pequenas mãos suplicantes coladas aos vidros do carro.
Buracracia, caos e... ânimo
Nada se faz com facilidade. Os menores trabalhos, as tarefas aparentemente simples, exigem esforços duríssimos. A corrupção e a burocracia estão em toda parte. Porém, apesar das dificuldades extraordinárias para viver, a cidade mantém um ânimo impressionante, algo que parece invencível. Algum mumbaicar lhe dirá, a qualquer momento: "De que você se queixa? Mumbai é muito melhor que todas as outras cidades". Um frisson lhe percorre a espinha diante da idáia de um lugar sobre a terra que seja pior do que este.
Quem tem a chance de conseguir um emprego e estar bem alojado não pode mais viver sem Mumbai, seu ritmo de vida desenfreado, seus salários - os melhores da Índia -, sua tolerância, seus modos de vida alternativos, as ocasiões sem fim que se oferecem aos que ousam, cinemas multiplex e galerias comerciais que regurgitam produtos importados, night-clubs olho no olho (os proprietários pagam generosamente à polícia para continuar abertos depois da meia noite), teatros, restaurantes gastronômicos com preços exorbitantes mas sempre cheios, vendedores de carros exóticos, telefones celulares, prédios de escritório que evocam Manhattan, butiques de criadores, concursos de beleza, hotéis cinco estrelas, escolas internacionais, hospitais modernos e aeroportos.
Tudo isso faz de Mumbai a única metrópole verdadeira da Índia. Perto dela, Chennay (Madras), Calcutá, Bangalore, o Vale do Silício indiano ou mesmo a capital, Nova Delhi, têm ares de cidades provincianas. Talvez seja difícil compreender, mas se trata de um país onde a população rural permanece no século 18. Nesse cenário, Mumbai aparece como obra de milagre, como verdadeira cidade de sonhos.
Especulação, loteria, cricket
É, sem dúvida alguma, a cidade mais próspera da Índia, a capital dos negócios e das finanças. Mais da metade da arrecadação do Imposto de Renda vem daqui. Mumbai tem mais milionários que todas as outras grandes cidades da Índia juntas. É aqui que se fazem mais de 90% das transações bancárias comerciais, que funciona a Bolsa, que estão localizados 80% dos fundos de investimento, que se localizam os mercados de capitais. O Banco Central indiano, os três grandes bancos comerciais e os grandes bancos de investimento estão enraizados no bairro de negócios de Mumbai.
Já o porto concentra 40% do comércio marítimo indiano. Os imóveis valem ouro (um apartamento sofisticado pode custar até 2 milhões de dólares). A cidade entrega-se à especulação, à loteria, às corridas hípicas e ao cricket. Os profissionais ascendentes da publicidade ganham mais que os médicos. Mumbai atrai o melhor dos talentos do país, multinacionais gigantes, investidores, artistas e intelectuais.
Também os fogos de Bollywood são irresistíveis. Mumbai tem a maior indústria cinematográfica do mundo, e todo indiano que quer fazer carreira no cinema se instala aqui. A ponto que as estrelas esquecidads do Ocidente assinam contratos para fazer uma ponta nos filmes indianos, esperança de uma nova juventude. Aqui, os atores parecem deuses, e os jovens de todos os meios se batem para conseguir um pequeno papel. O mundo do cinema habita mansões grandiosas nas periferias inóspitas e vive no pavor do telefonema de um chefe da máfia que lhe extorquirá dinheiro.
Histórias de bombeiros e atores
As histórias de sucessos pessoais espetaculares somam-se à imagem mítica da cidade . Como a do bombeiro Dhurubhai Ambani, que se tornou magnata da petroquímica; ou de Harshad Mehta, moço pobre do vilarejo de Raipur, que orquestrou um golpe de 6 milhões de rúpias (100 milhões de euros) e chegou a presidir a Bolsa (antes de ser encontrado morto, na prisão); ou ainda a do ator preferido dos indianos, Shah Rukh Khan, que chegtou a Mumbai de bolsos vazios e depois de anos de dureza, sem conhecer ninguém na cidade ou no mundo do cinema, e se fez superstar.
Neste oceano demográfico, encontra-se champagne, quando se está disposto a pagar por ela (três vezes o salário de um membro típico da classe média), mas a população não tem água potável para beber. Em Dharavi, a maior favela da Ásia, 600 mil pessoas comprimem-se em 1,5 quilômetro quadrado. O ar é pesado e venenoso, carregado de odores de detritos - mas é lá que são fabricados os artigos em couro mais elegantes, exportados para o resto do mundo. Há mais clínicas de emagrecimento e academias de ginástica que organizações não governamentais. Floresce um mercado de livros de auto-ajuda e de gestão, vendidos por crianças que não sabem ler.
Mumbai é impiedosa porém compreensiva. Nos jornais, os crimes mais cruéis aparecem lado a lado com os exemplos mais comoventes de companheirismo e compassão. Talvez por tantos de seus habitantes terem partido do zero, ela foi sempre um porto de tolerância, onde os cristãos se misturam aos parsis, os hindus têm vizinhos muçulmanos, os sikhs, os jainistas, os judeus e cada vez mais os phirangs (termo genérico para todos os estrangeiros) vivem juntos.
Porto de tolerância ou ovo da serpente?
Mas o fluxo de "estrangeiros" e a mescla de culturas estão também na origem de um monstro: o partido extremista hindu Shiv Sena, dirigido por Bal Thackeray, que defende os "filhos da terra". Nasceu do ataque aos estrangeiros, depois se lançou ao ataque de tudo o que não é maharastrino. Este partido atiça o ódio e provoca atentados. Conseguiu alterar o nome da cidade (Bombaim foi há séculos uma colônia portuguesa, cujo nome significava "bela baía"; Mumbai vem do nome da deusa protetora do lugar). Foi uma maneira de dizer ao mundo que ela pertence a seus ocupantes maharastrinos originais e os estrangeiros não têm nada a fazer aqui.
Para provar a determinação a repelir os "imigrantes", uma multidão de sainiks (partidários do Shiv Sena) saqueou recentemente o escritório de recrutamento da empresa ferroviária, exigindo quotas para os maharastrinos, que se sentiam ameaçados diante dos candidatos provenientes do norte pobre da Índia. Alguns dias depois, numa estação muito freqüentada, funcionários do Shiv Sena, entre eles mulheres, atacaram jovens migrantes vindos a Mumbai para o exame de seleção para a ferrovia.
"Nós iremos nos juntar"
Os resultados de uma enquete realidada pelo Times of India e por um programa popular de TV (The big fight, O Grande Combate) não são animadores. A maioria crê que o Shiv Sena tem motivos, e uma grande porcentagem aprova sua política de "filhos da terra". Boa parte dos entrevistados declara-se a favor da política de quotas contra os migrantes, no acesso aos empregos mais qualificados. Alguns pensam, além disso, que tais quotas fortaleceriam a imagem da cidade como centro financeiro internacional. Mumbai, a cosmopolita, irá se tornar Mumbai, a chauvinista?
E no entanto, escreve Suketu Mehta, um jornalista que cresceu em Mumbai e que vive hoje em Nova York, "se você estiver atrasado para o trabalho em Mumbai e se chegar à estação no momento em que o trem deixa a plataforma, você pode correr em direção aos vagões superlotados, porque muitas mãos se estenderão para içá-lo a bordo (...) Quando você estiver lá em cima, um pequeno espaço irá se abrir, para permitir que seus pés toquem o chão. (...) No momento do contato, quem te ajuda não sabe se tua mão é a de um hindu, de um muçulmano, de um cristão, de um brâmane ou de um intocável, nem se você nasceu nas cidade ou chegou a ela naquela manhã (...), nem se você é de Mumbai, de Bombaim ou de Nova York. Tudo o que sabem é que você procura um lugar na cidade de ouro e é o que basta. "Suba - dizem eles - nós iremos nos juntar".

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sábado, 10 de outubro de 2009

Mais sons...



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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Uma jornalista brasileira na Índia

"Casei com um indiano e descobri o caminho das Índias."

Jornalista Florência Costa mudou-se para a Índia há três anos, para escrever reportagens. Ela apaixonou-se por um indiano e casou em uma cerimônia budista. Ela conta como é fazer parte de uma sociedade em que matar baratas é imoral, o machismo impera e que vive em vários séculos ao mesmo tempo.

Por Florência Costa
  
A rivalidade entre sogras e noras na Índia é séria, pesada. Um dos tipos de violência feminina comum é o assassinato planejado por sogras/maridos 'à beira do fogão'. A sogra diz que vai ensinar a nora a fazer um prato, mas joga querosene e ateia fogo nela. Depois tenta caracterizar o crime como acidente de cozinha. Elas costumam planejar os assassinatos com os filhos, que, viúvos, podem sair em busca de outra noiva e ganhar um novo dote. O crime, conhecido como 'acidente no fogão de querosene', é mais comum nos casamentos arranjados, nos quais são oferecidos dotes aos pretendentes. Os casos acontecem aos montes e acabam na polícia. Muitas vezes é difícil comprovar o assassinato. Mesmo sabendo disso, me casei com um indiano - por amor, claro, mesmo porque minha família não ofereceria nada a ele por ter me escolhido. Por sorte, minha sogra não fala inglês nem pode me ensinar a cozinha típica local. Mas, por via das dúvidas, temos forno de micro-ondas e fogão elétrico lá em casa.
Conheci meu amor há quase três anos, pouco depois de chegar à Índia. Queria ter mais contato com jornalistas locais porque vim com a missão de escrever sobre o país em jornais brasileiros. Eles poderiam me dar boas dicas, informações e sugestões de reportagens. Uma amiga brasileira me deu o contato de um editor do maior jornal do país. Liguei para ele e combinamos de tomar um café. Foi paixão à primeira vista. Logo que começamos a conversar, percebemos que tínhamos coisas em comum: posições políticas, disposição para viagens, os mesmos gostos para livros e filmes, enfim, uma formação cultural próxima, apesar da distância dos nossos países. Quando ele me contou que uma das suas especialidades era a cobertura do Dalai Lama, fiquei extasiada. Sempre simpatizei com o budismo e esse era justamente um dos motivos pelos quais fui para a Índia. Ele me deu vários contatos para futuras matérias e prometeu ajudar no que precisasse.
Mas, logo nesse primeiro encontro, vivi uma saia justa cultural, por causa do sistema de castas. Um pouco antes de ir embora, ele me deu um livro explicativo sobre o assunto escrito por um 'dalit' (termo que significa oprimidos, os indianos que são chamados de intocáveis, situados no mais baixo patamar da pirâmide de castas do hinduísmo, geralmente voltados a trabalhos servis). Shobhan, esse é o nome do meu marido, ganhou mais um ponto positivo. Eu jamais conseguiria ser sequer amiga de alguém que apoiasse esse sistema que abomino. Nos despedimos à indiana: aperto de mãos, nada de beijinhos. Trocamos e-mails e combinamos de nos falar quando ele voltasse de uma viagem que faria à Inglaterra. Fui embora para casa repleta de curiosidade. Como todos os estrangeiros na Índia, queria saber como funcionava o sistema de castas. Também tinha vontade de descobrir à qual ele pertencia. Mas também sabia que pegava mal perguntar a casta de um indiano e resolvi não ser indelicada. Se fosse indiana, descobriria a origem dele pelo sobrenome. Mas Saxena, seu último nome, não me dizia nada.
Quando Shobhan voltou da viagem, escreveu-me. Se oferecia para me ajudar a conhecer a cidade. Aceitei. Fomos a um restaurante, conversamos sobre vários assuntos: o que estava acontecendo no mundo, na Índia. Percebi no olhar dele que tinha interesse por mim, mas ele sequer pegou na minha mão. Como a maioria dos indianos, Shobhan é tímido. Também percebi que não deveria dar o primeiro passo. Essa é uma tarefa dos homens. Nos despedimos com um aperto de mãos mais uma vez. Se fosse no Brasil, com certeza teria rolado uns beijinhos. Mas estava adorando aquela paquera. Combinamos de nos ver novamente.
A certeza de que ele estava interessado aumentava. Sempre estava disposto a me encontrar, inclusive nos sábados à noite. Íamos ao cinema, restaurantes, feiras de artesanato, exposições. Sempre como amigos. Ele me perguntava o que eu achava do país dele. Mas, eu não conseguia contar o choque. Só falava do lado positivo, que de fato existia: o privilégio de conhecer uma cultura milenar tão diferente da minha, poder escrever sobre um dos países que despontavam como potência emergente.
Eu sabia que na Índia as amizades entre homens e mulheres são raras. Shobhan era meu primeiro amigo em seis meses. Também estava ciente de que as mulheres ocidentais têm fama de 'fáceis' e não são muito respeitadas. Mas não dei a menor bola e não hesitei em continuar saindo com ele. Esse é um preconceito comum entre os homens do povo, que não é o caso de Shobhan. Ele é mais cabeça aberta do que a média dos indianos.
Depois de um mês nessa lenga-lenga, ele me convidou para passar alguns dias em um resort, em uma praia, perto de Mumbai. Disse que tinha chamado amigos e que faríamos um piquenique. Mas quando chegamos lá, ninguém apareceu. Ele escolheu um quarto com duas camas de solteiro para nós. Até hoje ele jura - sempre com um sorrisinho maldoso - que os colegas desistiram na última hora. Nos acomodamos, fomos tomar uma cervejinha e comer um peixe frito. Minha passagem de volta para o Brasil estava marcada e começamos a falar de planos. Ele me pediu para adiar a viagem. Queria me mostrar mais lugares na Índia, me levar para conhecer o Dalai. Foi seu jeito tímido de me pedir em namoro. Percebi que tudo aquilo estava sendo difícil para ele. Respondi que sim, mudaria a data do voo. Estávamos muito felizes.

 
Nosso primeiro beijo só aconteceu à noite, quando fomos para o quarto dormir juntos. Ele foi muito carinhoso, mexia no meu cabelo, passava a mão no meu rosto. Namorar na Índia é um exercício complicado. Os casais quase não se beijam em público sob o risco de serem presos por atentado ao pudor. Mesmo com o namoro oficializado, a gente só se beijava em casa ou em bares moderninhos.Não dormimos mais juntos durante semanas. Ele até me chamava para passar a noite na casa dele, mas percebia o desconforto na sua voz. Acho que fazia isso porque sabia que eu era ocidental. Na Índia, mesmo com uma população enorme, todo mundo comenta quando uma mulher dorme na casa de um homem com quem não é casada. Por isso, não ficava na casa de Shobhan nem de madrugada. Também não o convidava para dormir na minha. Ele ficaria constrangido.
Só consegui perguntar à qual casta ele pertencia depois de meses de namoro. Sua casta correspondia aos guerreiros, governantes, antigos reis. Mas ele, que sempre criticou o casteísmo, se converteu ao budismo como forma de protesto. O budismo não aceita a discriminação de castas.
Como todo bom indiano, Shobhan sempre me perguntava se casaria com ele. Achava que ele estava brincando e respondia, 'sim'. Minha passagem de volta para o Brasil tinha sido apenas adiada, mas ainda existia. Eu estava dividida. Ficava angustiada ao pensar que não ficaria mais com Shobhan, mas, imagine, sentia saudade até do conforto e da organização do trânsito de São Paulo, de falar a minha língua. Na Índia, os carros, motocicletas, motonetas e vacas ocupam as ruas sem nenhuma lógica. Não existem leis de trânsito, semáforos, muito menos contramão. Impera a lei do mais barulhento. Aqui, as pessoas buzinam para sinalizar que estão atrás de outro automóvel. Os ônibus e caminhões têm placas nas traseiras que dizem: 'Buzine, por favor'. É um aviso de que ele não pode dar ré a qualquer momento. Acho que o espelho retrovisor é um enfeite. E deve ser por isso que a meditação nasceu aqui!
Marquei minha passagem de volta. Dias depois, ele me fez uma surpresa. Disse que iria pedir a um monge budista tibetano para nos casar. Fiquei completamente estupefata. Disse sim na hora, mesmo com frio na barriga. Sabia que estava sendo impulsiva, mal o conhecia, mas tinha o pressentimento de que daria certo. Além do mais, a maioria das decisões importantes da minha vida tinha sido tomada dessa forma.
Contei para a minha família e amigos por e-mail a grande novidade e depois liguei para a minha mãe. Ninguém acreditava. Disse que estava apaixonada e todos me apoiaram na decisão. Lamentaram não poder ir à cerimônia. A família dele ficou muito feliz, mesmo eu sendo estrangeira. Afinal, ele iria cumprir a missão social mais importante da vida: casar. Sem ele saber, seus pais já haviam até colocado anúncios no jornal, na seção de classificados de casamento, divididos por castas, o que é comum por aqui, mesmo para os homens. Antes de me conhecer, ele já havia passado pela constrangedora situação de ir a vários encontros às escuras. O casamento arranjado ainda é a principal forma de união entre os indianos. O pagamento do dote - aquele que as sogras tanto adoram - também é comum. A gente brinca com esses hábitos arcaicos que ainda existem na Índia, um país que vive em vários séculos ao mesmo tempo. Felizmente, Shobhan vive no século 21.
Nos casamos duas semanas antes de eu voltar para o Brasil. A cerimônia budista foi simples e durou 40 minutos. Sentamos em almofadas diante da mesa do monge, que falou o tempo todo em tibetano. Não entendi nada. Depois Shobhan me disse que o sermão versava sobre Buda e seu significado. A ceia foi vegetariana, é claro. O cozinheiro era do Butão e preparou um menu delicado, bem menos apimentado que o indiano, com o qual meu estômago ainda não fez as pazes.
Depois de casada, tive a minha primeira experiência como patroa na Índia. Nunca tinha tido uma empregada doméstica, até porque não conseguia me comunicar com elas em híndi. Por essa experiência, descobri que o sistema de castas ainda está enraizado nas cidades. A moça fazia a faxina do apartamento, mas ignorava o banheiro. Quando perguntei a Shobhan por que ele não pedira a ela que limpasse também o banheiro, ele me olhou espantado, com um olhar que me fez sentir uma assassina: 'Você queria que eu pedisse isso a ela? Nunca, não poderia!'. E me explicou que a moça não pertencia à casta de limpar o banheiro. As famílias costumam ter vários empregados, um para cada tarefa.

 
Cinco meses depois do casamento nos mudamos para a capital, Nova Délhi, onde vivemos até hoje. É o centro dos correspondentes estrangeiros por ser a sede do governo central e das embaixadas. Shobhan pediu transferência dentro do mesmo jornal para me acompanhar. Em Délhi, o assédio dos homens é pior do que em Mumbai. Apesar de tímidos, eles são extremamente machistas. São mais agressivos e menos acostumados à presença das mulheres em ambientes dominados por homens. Não se veem muitas mulheres nas ruas, trabalhando em lojas, vendendo produtos. Tradicionalmente, a mulher ficava em casa e o homem saía para trabalhar. Eles dominam até os salões de cabeleireiros. Aqui, pedicures e manicures são homens.
Nova Délhi é uma das cidades com mais alto índice de estupro e agressões a mulheres na Índia. Os homens tentam dar passadinhas de mãos nas pernas e nos seios -uma obsessão dos indianos -, especialmente em ambientes com muita gente. Por isso, Shobhan queria me acompanhar na rua, pedia para eu não andar sozinha de rickshaw (aquele triciclo motorizado muito comum na Ásia). Casos de motoristas que levam mulheres para lugares ermos e as estupram são comuns. Levei várias passadas de mão até aprender que não se deve encarar os homens na rua, mesmo com cara feia. O ideal é desviar o olhar e proteger o peito cruzando os braços, principalmente em aglomerações. Hoje, ando com um spray de pimenta para jogar nos olhos dos eventuais agressores.
Alugamos um apartamento no terceiro andar com um imenso quintal de frente para um parque. É um lugar privilegiado. O único porém são as visitas inesperadas dos macacos. Shobhan sempre liga para me lembrar de não deixar a porta de casa aberta enquanto estou na espreguiçadeira do quintal pegando um solzinho: os macacos costumam entrar nas casas e roubar comida e objetos de valor, como celulares. Na minha, eles ainda não conseguiram furtar nada.
A família de Shobhan não foi ao nosso casamento. Sua irmã passou por uma cirurgia grave e de emergência no mesmo dia. Ficaram chateados, nos ligaram, pediram desculpas. Entendi a situação. Mas descobri depois que Shobhan estava magoado e não queria rece bê-los na nossa casa. Com essa demora em conhecer a família, já estava achando que eles não tinham me aceitado. O mito da sogra assassina só aumentava e até virou piada entre meus amigos e familiares.
Sete meses depois do casamento, os pais dele vieram nos visitar, quando a raiva já havia passado. Minha sogra me surpreendeu e foi muito doce. Me abraçava e me beijava muito, o que ela não faz nem com os filhos, porque na Índia eles só agem assim quando as crianças são bem pequenas. Apesar de não falar inglês, entende. Sorria enquanto eu falava. Meu sogro também foi educadíssimo, com um inglês maravilhoso, inteligente e bem informado. Foi um alívio. Tive que mandar um relatório imenso e detalhado para a minha mãe, que, no fundo, estava morrendo de medo de eu ter entrado em uma roubada.
Só depois de casada me senti à vontade para contar a ele sobre meu medo de andar de táxi. Logo que cheguei, uma ratazana resolveu subir no colo de um amigo dentro do táxi. Como fui perceber depois em vários episódios macabros, os indianos não costumam matar esses bichos para não ter carma ruim na próxima vida (nora pode, mas bicho...). Ou seja, não é só a vaca que tem vidão na Índia. Os ratos, baratas e aranhas que aparecem nas casas e dentro dos carros são apenas expulsos, sem danos a sua integridade física. Esse foi um capítulo à parte no meu casamento. No início da convivência a dois, Shobhan se recusava a matar baratas - que eu odeio com todo o coração. Mas, felizmente, o meu ódio prevaleceu e ele entendeu que as baratas não têm espaço na nossa vida. Nem nessa nem em outra encarnação: chinelo e spray nelas! (Só que tive que dar o braço a torcer quando uma bichinha se aproximou do meu pé durante uma entrevista do Dalai Lama. Estava na primeira fileira, pertinho do Dalai. Shobhan, do meu lado, viu meu pavor e me advertiu: se matasse a baratinha, perderia todas as fontes de informação budistas presentes, além da possibilidade de entrevistar o líder budista. Em nome do jornalismo, não matei, mas assoprei a bicha, que felizmente foi embora).
Não, não foi uma roubada. Nem o casamento, nem o marido, nem a sogra, nem o restante da família. Foi um grande presente que a Índia me deu. Mas morar aqui continua sendo um desafio, confesso. Quanto às ratazanas, já consigo até encará-las perto de mim, desde que não venham para o meu colo, é claro. Prefiro elas, as baratas, as aranhas e os macacos ladrões aos homens machistas e incovenientes de Délhi.'



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