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quinta-feira, 26 de março de 2015

Um imã nos trópicos



    • Um imã nos trópicos

      Religioso deixou diário com informações sobre o islamismo no Brasil do século XIX

      Paulo Daniel Farah


    • Uma embarcação otomana aportou no Rio de Janeiro em 1866. A bordo vinha uma autoridade religiosa muçulmana, de nome Abdurrahman al-Baghdádi. Ele nascera em Bagdá, fora criado em Damasco e era súdito do Império Otomano, que nessa época controlava a maior parte do Oriente Médio. O imã chegou ao Brasil, pode-se dizer, por acaso. Tempestades tiraram seu navio do rumo. Como ainda não existia o Canal de Suez, a embarcação precisava contornar o continente africano para ir de Istambul ao seu destino, Basra. No entanto, por causa do mau tempo, o religioso foi “levado à força, sem qualquer opção”, para o Rio de Janeiro.
      Ao descer no porto, Al-Baghdádi, que era um respeitável erudito, versado em teologia e em diversos idiomas, surpreendeu-se ao ser saudado com o cumprimento tradicional islâmico, as-salámu ‘alaykum (“Que a paz esteja contigo!”). Aos poucos, foi descobrindo que havia no Império do Brasil uma população muçulmana bastante organizada – a umma, como é denominada a comunidade islâmica –, na verdade, a maior da América Latina. Por isso, acabou ficando por aqui mais tempo do que imaginava. Dessa sua experiência em terras brasileiras restou um documento valiosíssimo – o único registro conhecido de um olhar árabe muçulmano sobre o Brasil do século XIX.

      No manuscrito, guardado pela Biblioteca de Istambul após o fim do Império Otomano, Al-Baghdádi relata sua viagem e descreve, de forma minuciosa e especializada, as práticas e as crenças da comunidade muçulmana no Brasil e, em particular, dos remanescentes dos malês, como eram conhecidos aqui os muçulmanos de origem africana. Estes lideraram a principal revolta de escravos urbanos das Américas – o levante dos malês, em 1835, em Salvador. A rebelião desses escravos cultos acabou depois de vigorosa repressão; houve prisões e execuções, mas os efeitos desse movimento de libertação, que atuava havia décadas, fizeram-se sentir na Bahia, no Rio de Janeiro e em várias outras localidades do Império do Brasil. 
      O relato do imã é o principal documento do século XIX sobre os malês de que se tem registro. Redigido em árabe, turco otomano, persa, francês, grego, português e tupi (todos em caracteres árabes), em uma linguagem rebuscada e poética – o que atesta o multilingüismo e a formação literária do imã –, o texto retrata o cotidiano da escravidão nas principais cidades brasileiras em meados do século XIX, o que permite levantar novas questões a respeito da história social do regime escravista no Brasil. O documento ajuda ainda a compreender o processo por meio do qual as autoridades religiosas – neste caso, Al-Baghdádi – tentam promover uma mediação entre o Islã e a realidade cultural brasileira. Constitui uma fonte de informação não só histórica, mas também geográfica, antropológica, religiosa e literária sobre o Brasil, a África, os árabes e os otomanos.
      A notícia da presença de Al-Baghdádi no Brasil correu de boca em boca pela comunidade muçulmana e também por meio de informes escritos feitos por esses escravos letrados, e logo extrapolou os limites do Rio de Janeiro. Delegações vindas da Bahia e de Pernambuco chegaram a viajar até a então capital do país com a missão de convidar o ilustre visitante a ministrar aulas sobre as fontes e as doutrinas do Islã. No Rio de Janeiro, que o imã descreveu como uma “magnífica cidade”, ele chegou a instruir por dia mais de 500 pessoas, entre escravos e libertos, nas práticas e nas doutrinas muçulmanas. Como professar o islamismo era proibido, ele reunia seus discípulos num local clandestino, a cerca de 20 quilômetros do centro da cidade. Em Salvador e no Recife, também lecionou em locais secretos.
      O relato do imã, “bagdali de origem e nascimento, damasceno de pátria e crescimento”, revela uma forma de apreensão do Brasil, da sua história e do papel das populações muçulmanas nunca antes vista. Ele conta que encontrou em uma livraria do Rio de Janeiro um Alcorão impresso na França. Com o intuito de garantir o acesso ao livro sagrado muçulmano e ampliar o conhecimento dos muçulmanos acerca dessa fonte fundamental, encomendou vários exemplares do Alcorão ao livreiro mediante o pagamento de um depósito, posteriormente restituído.
      No manuscrito, fica clara a liderança de africanos muçulmanos nos movimentos antiescravidão. Após as rebeliões da primeira metade do século XIX, os escravos seguidores do Islã passaram a ser mais reprimidos pelo Estado imperial em sua prática religiosa. Era comum a intervenção da polícia quando se reuniam, e por isso muitos decidiram esconder sua religião e evitar a exposição pública durante as celebrações.
      Al-Baghdádi narra que, por causa do medo de serem identificados como muçulmanos, muitos praticantes iam para casa durante o dia para rezar secretamente. Outros, para os quais isso não era possível, recuperavam a oração do meio-dia e da tarde no período da noite, já em casa. O imã não emprega em nenhum trecho de seu relato a palavra masjid (mesquita). Aparentemente, os muçulmanos tinham apenas salas de reunião, que descreviam com o termo árabe majlis.
      O catolicismo era a principal forma de inserção social dos indivíduos no Estado imperial brasileiro. Como Al-Baghdádi demonstra, os muçulmanos eram obrigados, aqui, a batizar os filhos, a não ser que eles tivessem recebido o sacramento no porto de saída da África. Só assim ganhavam uma certidão comprobatória e evitavam complicações. Para que pudessem ser enterrados, também tinham de apresentar um documento que atestasse seu vínculo com a Igreja. Apesar das proibições, Al-Baghdádi instruiu seus discípulos a despir e lavar o falecido, além de orar em pé por sua alma, conforme dita a tradição islâmica. Na escatologia muçulmana, após o ritual e o enterro, os anjos Nakír e Munkar testam a fé do falecido e o questionam a respeito de Deus, da religião e dos profetas.
      O imã chegou a fazer pessoalmente a lavagem ritual de um muçulmano falecido, mas, pela dificuldade de mudar as práticas dos cemitérios, pouco pôde fazer quanto à posição e à orientação do corpo, que deveria ter a cabeça direcionada para a cidade de Meca.
      O comandante da embarcação otomana que levou o imã ao Rio de Janeiro contou-lhe o que ouvira a respeito da proibição da prática do Islã no Império do Brasil, assim como a de qualquer outra religião que não a católica em construções ou edifícios “que tivessem alguma forma exterior de templo”, de acordo com o Código Penal de 1830. Os muçulmanos tentavam ocultar sua religião para não ser punidos pelas leis imperiais. Após a Abolição (1888) e a proclamação da República (1889), reduziu-se consideravelmente a perseguição aos muçulmanos. E no século XX, em função da Constituição de 1946, que garantia a liberdade religiosa, árabes muçulmanos fundariam mesquitas e centros de estudos, inicialmente em São Paulo e depois em outras cidades.
      O imã Al-Baghdádi descreve e critica certas práticas de origem africana que observa no Brasil, como a utilização de grigris, pequenas bolsas de couro que contêm versículos corânicos. Havia grande semelhança entre os amuletos utilizados no Brasil e na África. Também se refere a sistemas de adivinhação praticados por alguns muçulmanos, especialmente em Pernambuco, similares aos africanos.
      No texto, são nítidos a sensação da grandiosidade do universo e o encanto que a floresta virgem e os seres que nela habitam despertaram em Al-Baghdádi. O imã, assim como outros autores de relatos desse período, exalta a fauna e a flora do Brasil. Fala da grande variedade de frutas que encontrou e se impressiona com seu aspecto, sabor e diversidade. Afirma que há no país cinqüenta frutas inexistentes no Oriente; ao descrevê-las, procura compará-las à noz, à romã, à tâmara e à uva.
      Há semelhanças com outros viajantes estrangeiros nas comparações. Quando descreve a jaca, por exemplo, diz que ela vem de “uma árvore do tamanho da grande nogueira. Tem frutos maiores do que a abóbora, pendurados no tronco e nos grossos galhos da árvore. A parte externa assemelha-se à pele de um crocodilo e seu interior tem o aspecto de uma romã, embora a semente seja como uma tâmara. Seu sabor se parece com um doce feito de farinha e mel”.
      Depois de permanecer por cerca de três anos no Brasil e de passar por mais de 20 cidades, em 1869 o imã iniciou a viagem de retorno, porque sua “alma sentiu saudade de ouvir o chamado à oração e de ver as mesquitas e os amigos”, como explica no manuscrito. Após passar por Lisboa, Gibraltar, Argel e Alexandria, foi a Meca em peregrinação. Depois, visitou sua família em Damasco e dirigiu-se a Istambul.
      O manuscrito e a análise minuciosa que o acompanha contribuem para o estudo da História do Brasil de diversas formas. Em primeiro lugar, evidenciam a importância dos atores africanos, indígenas e árabes, entre outros, para a formação da identidade brasileira, uma identidade múltipla que muitas vezes é caracterizada apenas sob a perspectiva eurocêntrica.
      De saudações e expressões a vestimentas, passando pela utilização de amuletos e pelos rituais e sonoridades de distintas irmandades, os escravos muçulmanos deixaram um legado extenso na cultura material e imaterial do Brasil, que ainda hoje se faz presente. O ato de vestir-se de branco na sexta-feira, dia sagrado para o Islã, é uma dessas marcas, bastante visível na Bahia. O uso de patuás como proteção remete ao campo religioso africano e às práticas muçulmanas dos escravos, especialmente aqueles que contêm textos em seu interior. 
      Por fim, esse documento também vai ao encontro das análises modernas que ressaltam a resistência do negro à escravidão e a importância crucial da África para a História brasileira. Nesta época de maniqueísmos e belicismo, espera-se que este manuscrito contribua para que o diálogo sul-sul, sobretudo entre sul-americanos, africanos, árabes e muçulmanos, se amplie e seja guiado pela recomendação islâmica de que ninguém deve pretender ser superior ao estrangeiro, a não ser pela piedade.
      PAULO DANIEL FARAH é professor da Universidade de São Paulo e autor do livro Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali. (Bibliaspa, FBN, BNA e BNC, 2007).
      Saiba Mais:
      Revista Fikr de Estudos Árabes, Africanos e Sul-Americanos.  São Paulo: BibliASPA, 2007.
      REIS, J.J. Rebelião escrava no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

      Saiba Mais - Site:
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    sábado, 21 de março de 2015

    Rajastão meu amor

    Para ficar com água na boca pra conhecer Jaipur a cidade rosa, Udaipur a cidade dos lagos, Jodhpur a cidade azul e Jaisalmer a Cidade Dourada...

    Rajastão, a Índia que você vê na TV

    "Um país enorme e multicultural. É difícil reduzir a Índia a alguns poucos e simples estereótipos. Já passamos por vilas budistasmontanhas nevadaspraias de clima tropical e metrópoles cosmopolitas. Todos estes lugares estrapolaram os adjetivos usados pelo senso comum para definir a terra das especiarias.
    Sim, ela é cheia, bagunçada e barulhenta, mas também colorida, espiritual, rica em sabores e aromas. Em todos os lugares fomos surpreendidos por peculiaridades locais que em muito diferiam da ideia que nossas mentes ocidentais tinham do subcontinente.
    Mas, se estereótipos nunca são totalmente verdadeiros, nem totalmente mentirosos, onde estava então aquela Índia que esperávamos encontrar desde que chegamos ao país? Onde estavam os elefantes e camelos, as mulheres que desfilam em seus saaris coloridos, as barraquinhas de rua que vendem temperos e tecidos, os encantadores de serpente, os palácios dos marajás, o deserto de clima quente o ano inteiro?
    Jaipur, Índia
    Não estavam por completo nem nas geladas montanhas do Himalaia, nem na ocidental Chandigarh ou na moderna Mumbai. O mais perto do estereótipo de Índia que você conhece por meio das telas da TV está no estado do Rajastão.
    Elefantes do Rajastão, na Índia
    Cinco meses na Índia e eu ainda não sabia onde estavam os elefantes.
    Não é à toa que a região é uma das preferidas dos diretores de cinema para retratar o país. Talvez você já tenha assistido o filme 007 contra Octopussy ou se lembre da novela Caminho das Índias, de Glória Perez. O que você viu ali não é a Índia por completo, é o Rajastão. Tanto, que o nome Juliana Paes não é tão estranho aos ouvidos dos vendedores de Jaipur.
    Localizado no deserto do Thar e na fronteira com o Paquistão, o estado é famoso por ser casa dos Marajás e um dos destinos mais procurados por turistas estrangeiros em busca de belas paisagens, construções e da colorida cultura indiana.

    encantadores de serperte na india

    Jaipur: Capital do estado, Jaipur é também conhecida como The Pink City, por causa da cor dos prédios da cidade. Algumas das principais atrações do estado estão localizadas nas redondezas, como o Amber Fort. Aqui também é o lugar onde você vai encontrar as melhores pechinchas de souvenirs para levar para casa. Reserve dois dias para conhecer a cidade.
    Jaipur, Índia
    Udaipur: Conhecida como The Lake City, ou a Veneza do Oriente, Udaipur é a cidade mais romântica da Índia. Construída à beira de três lagos, possuí um belíssimo pôr do sol e uma atmosfera meio hippie, cheia de turistas e ruas estranhamente limpas e calmas (para os padrões indianos, claro). Dois dias também bastam para conhecer a cidade, mas tem quem deseje ficar mais.
    Udaipur Veneza do Oriente
    Jodhpur: A Cidade Azul ganhou este apelido por ter quase todas as construções desta cor, o que dá um belo efeito quando se observa a cidade do alto. A principal atração do lugar é o forte Mehrangarh, construído no século 16 e localizado no alto de uma colina. Também merece uma visita o mercado de rua da cidade, um dos mais incríveis da Índia.
    Mercado de rua em Jodhpur
    Jaisalmer: Um dos destinos turísticos mais procurados do Rajastão, Jaisalmer, a Cidade Dourada, fica no meio do deserto do Thar. Lá é possível fazer safári de camelo, assistir o pôr do sol e até mesmo pernoitar em uma tenda no deserto. Há também templos, museus e outro forte, construído em 1156."
    Safari de Camelo no Deserto de Thar
    Por Natália Becattini in: 360meridianos.com
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    sábado, 14 de março de 2015

    Ishq & Mushq - Amor e Cheiro

    BASIL, Priya. Ishq & Mushq: amor e cheiro. Tradução Inês Cardoso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

    "Por que será que olhar para o horizonte nos deixa reflexivos? Talvez, se pudéssemos continuar enxergando para além das fronteiras do nosso campo de visão, nos distraíssemos para sempre de nós mesmos." (p. 26) 

    "Nenhuma história é a história de um homem só. Tudo o que aconteceu a Dharji foi por causa de alguma outra coisa, de alguma outra pessoa ou ocorrência." (p.43)

    "Ninguém pode saber as desavenças e os silêncios que ligam duas pessoas." (p. 61)

    "- Você não confia em ninguém - Karam balançava a cabeça - porque você não confia em si mesma. Não sei o que se passar por essa sua cabeça, mas sei que nós julgamos os outros pelos nossos próprios padrões, e, a seus olhos, ninguém é bom." (p. 129)
    "As circunstâncias eram totalmente diferentes, mas as duas mulheres foram movidas pelo mesmo impulso. Foram seduzidas pela possibilidade de reinvenção. Ambas acreditaram na ilusão de que a felicidade podia ser encontrada em algum outro lugar - se elas pudessem simplesmente chegar a este lugar. Mas você carrega a si mesmo a qualquer lugar que vá - essa era a lição que Sarna nunca aprendera e que Pyari ainda teria que descobrir. Ela pensou que, ao afastar a mãe intrometida, encontraria paz. Mas parece que você carrega também a família onde quer que vá. Eles estão lá no caráter, nos hábitos que você desenvolveu e nas rugas que envelhecem seu rosto, aumentando a semelhança com eles. (...) A família está lá também nas obrigações e nas expectativas que, mesmo quando nunca ditas, você sabe que é responsável por satisfazer. A família pode se fazer presente em qualquer lugar, como conforto ou fardo." (p. 294-295)

    "- Essa vida não é fácil. Ser mulher é sofrer. Sofrer. Quando você compreende isso, tudo fica mais fácil de aceitar." (p. 387)

    "- Sabia que em alguns países do Oriente Médio cortejam-se os convidados pela quantidade de açúcar que é colocada no chá deles? Quanto mais você gosta de uma pessoa, mais adocica a bebida dela. E o convidado tem que tomar tudo, não importa quão doce esteja, senão ele corre o risco de ofender o dono da casa." (p. 397)

    "Ele começou a dirigir para trás porque, depois de um acidente, o carro não andava mais para a frente. Acho que depois disso ele ficou afetado por essa nova perspectiva das coisas e decidiu continuar assim e fazer disso sua filosofia de vida. Eles parece estar dizendo agora a todos que às vezes 'você pode melhorar uma situação indo na contramão, andando para trás'." (p. 425)

    "Mas os sentimentos suscitados pelos filmes estão fadados a morrer frente à mais leve cutucada da realidade." (p. 431)


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