Ultimamente foram apontadas diversas críticas à obra de Monteiro Lobato quanto aos negros e a questão do racismo. Mas alguém já pensou sobre como o autor trata a cultura indiana em Histórias do Mundo para Crianças? O livro publicado em 1933 pretende abordar a história do mundo através de uma linguagem simples, para as crianças.
Algum estudioso da obra de Lobato poderia verificar se há alguma relação entre a publicação do Histórias do Mundo para crianças e as traduções que o autor fez para a coleção História da Civilização de Will Durant, pela Cia Editora Nacional.
Leia o diálogo de Dona Benta com as crianças do Sítio do Pica-Pau Amarelo e tire suas próprias conclusões:
"(...) Do outro lado, a sul e leste da Ásia, viviam povos muito importantes, como os indianos, os chineses, os japoneses. Vinte séculos antes de Ciro, um ramo da família ariana havia emigrado da Pérsia para a Índia, onde dera origem a um povo numeroso. Esse povo foi se desenvolvendo a seu modo e acabou dividido em classes. Com o correr do tempo essas classes viraram castas, impedidas de ter qualquer espécie de ligação entre si. Um homem duma casta não podia casar-se com mulher de outra. Criança duma casta não podia nem brincar com criança de outra. Se uma criatura estivesse tinindo de fome, tinha que morrer antes de aceitar comida das mãos duma de outra casta. Nem esbarrar nela podia. Separação absoluta, como se fossem leprosos. -Que horror! - exclamou . - Parece incrível tanta burrice e maldade na vida dos homens.
- Assim é, minha filha, e nenhuma burrice tão dolorosa como esta distinção de castas que até hoje faz a desgraça da Índia. Entre as castas indianas, a mais alta de todas era a dos Guerreiros e Governadores, que quase se confundiam, porque para ser governo [sic] era preciso ser guerreiro. Depois vinha a casta dos brâmanes, com funções muito semelhantes às dos sacerdotes egípcios; eles eram o que hoje chamamos homens profissionais - médicos, advogados, engenheiros, etc. Depois vinham os agricultores e comerciantes - os padeiros, os vendeiros, os fruteiros. Depois vinha a gente baixa - isto é, gente ignorante que só sabe fazer serviços brutos - carregar coisas, cortar paus, capinar o chão. E por último vinha a casta dos Párias desprezada por todas as outras. Pária quer dizer gente na qual não se pode tocar nem a ponta do dedo - por isso são também chamados os Intocáveis.
- E parece que até hoje é assim, não, vovó? - observou Pedrinho.
- Até hoje é assim, meu filho, por mais que os ingleses dominadores da Índia tudo façam para mudar a situação. Anda lá agora um grande indiano querendo destruir o terrível preconceito de casta.
-Gândi - adiantou Pedrinho - que lia os jornais diariamente. - O Maatma Gândi...
- Ele mesmo. Mas sua luta vai ser enorme, porque o preconceito de casta é velhíssimo e as coisas muito velhas adquirem cerne, tal qual as árvores.
- Mas os indianos acreditavam num deus chamado Brama; daí a sua religião ser chamada Bramanismo. Segundo o bramanismo, quando uma pessoa morre a alma passa a habitar o corpo de outra pessoa ou dum animal; se a pessoa foi boa em vida, sua alma recebe promoção indo para o corpo de uma criatura de casta superior; se foi má, é rebaixada - vai até para os corpos dos bichos comedores de carniça, como o crocodilo ou o urubu.
Os mortos não eram enterrados e sim queimados. Se o defunto fosse homem casado, também queimava a viúva. As coitadas não tinham o direito de continuar vivas depois da morte do marido...
- Que desaforo! - exclamou Narizinho indignada. - Quer dizer que mulher nesse país não era gente - não passava de lenha...
- Por muito tempo foi assim, mas se era a mulher que morria, o viúvo, muito lampeiramente, ia arranjando outra...
- Por que em toda parte essa desigualdade das leis e costumes, vovó? Por que tudo para o homem e nada para a mulher?
- Por uma razão muito simples. Porque os homens, como mais fortes, foram os fabricantes das leis e dos costumes - e sempre trataram de puxar a brasa para a sua sardinha. Mas voltemos à Índia. Os templos bramânicos abrigavam uns ídolos verdadeiramente horrendos de feiúra. Deuses de diversas cabeças, deuses com seis e oito braços e outras tantas pernas; deuses com tromba de elefante; deuses com chifre de búfalo.
- Mas a senhora disse que eles só tinham um deus, vovó...
- Um deus supremo. Os outros eram deuses menores - espécie de santos. Povo nenhum se contenta com um deus só. São precisos vários, mesmo para os que seguem as religiões chamadas monoteístas.
- Mono, um; theos, deus, Religião monoteísta quer dizer religião dum deus só - berrou, com espanto de todos, Pedrinho, que por acaso havia lido aquilo um dia antes.
- Perfeitamente! - aprovou Dona Benta. - Você às vezes até parece um dicionário...
- Dê-lhe chá de hortelã bem forte que ele sara, Dona Benta. Isso são bichas - gritou lá do seu canto a pestinha da Emília.
Ninguém achou graça e Dona Benta continuou:
- Lá pelo ano de 500 A.C. nasceu na Índia um príncipe de nome Gautama, que se revoltou contra o que via em redor de si - tanta miséria e sofrimento por causa de idéias erradas. E apesar de nascido na grandeza, tudo abandonou para trabalhar pela melhoria do pobre povo, começando a pregar por toda parte os seus princípios. Ensinava o homem a ser bom, a ser honesto, a ajudar os infortunados. Tão altas eram as idéias desse príncipe, que o povo entrou a chamar-lhe Buda, que quer dizer Sábio, e por fim o adorou.
Uma nova religião nasceu daí. Muitos que seguiam o bramanismo abandonaram os horrendos ídolos desse culto para se tornarem budistas."
LOBATO, Monteiro. O outro lado do mundo In: Histórias do Mundo para Crianças. São Paulo: Brasiliense, 2004. (Pág.41-43)